SPA mantém proposta de trasladação de José Afonso para o Panteão Nacional, contra a vontade da família

A família insiste que a vontade do músico seja respeitada. E apela ao envolvimento do Estado e da SPA na recuperação e na preservação das suas gravações originais.

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José Afonso está sepultado, conforme a sua vontade expressa, numa campa rasa MIGUEL MANSO

A Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) mantém a proposta de trasladação dos restos mortais de José Afonso para o Panteão Nacional "com base nos argumentos aduzidos no comunicado difundido [na terça-feira] sobre o assunto", mesmo depois de a família do músico a ter rejeitado, anunciou esta quinta-feira o conselho de administração daquele organismo num comunicado enviado à agência Lusa.

A família de José Afonso opôs-se na quarta-feira à proposta da SPA, lembrando que José Afonso "rejeitou em vida as condecorações oficiais que lhe haviam sido propostas" e "foi, a seu pedido, enterrado em campa rasa e sem cerimónias oficiais, em total coerência com a sua vida e pensamento". Reconhecendo a "meritória intenção que inspira a proposta", a nota da família, assinada por Pedro Afonso, um dos quatro filhos do músico, insiste que é a vontade de José Afonso "que deve ser respeitada".

A mesma nota adiantava ainda que "a família considera fundamental a salvaguarda e fruição da obra de José Afonso e a defesa dos seus direitos de autor, contando para tal com o superior envolvimento do Estado Português e da SPA, nomeadamente para que se garanta a recuperação e preservação das gravações originais".

Horas antes, e em declarações à Lusa, a viúva do músico, Zélia Afonso, dissera já ter ficado surpreendida com proposta, cuja motivação manifestou desconhecer, e mostrara-se "determinada" a assegurar que a vontade expressa de José Afonso não seja desrespeitada.

Também a direcção da Associação José Afonso (AJA) "discorda em absoluto" de qualquer acção que leve à trasladação dos restos mortais de José Afonso para o Panteão Nacional, segundo uma posição tornada pública esta quinta-feira. A AJA lembra que qualquer decisão de trasladação do corpo do cantor "estará sempre cometida à família de José Afonso", e congratula-se por esta ter rejeitado liminarmente a proposta da SPA.

A associação criada após a morte de José Afonso (1929-1987) para divulgar a obra do autor considera a iniciativa "uma atitude pouco avisada e reveladora de algum desconhecimento sobre o carácter e a postura de José Afonso, que sempre recusou quaisquer honrarias, condecorações ou prebendas".

Num comunicado assinado pelo presidente da AJA, Francisco Fanhais, a associação sublinha ainda que a melhor forma de "honrar e salvaguardar a memória de José Afonso" é "editar, divulgar e preservar a sua obra – em grande parte indisponível – pois só deste modo a gente deste tempo e as gerações vindouras poderão ter acesso a um património cultural e cívico inestimável".

Tal como Arnaldo Trindade, o editor de José Afonso na mítica Orfeu, que considerou a proposta da SPA "absolutamente ridícula", também Francisco Fanhais, amigo e companheiro de canções de José Afonso, viera já defender, a título pessoal, que a "atitude mais digna" é "deixá-lo onde está", que é "onde quis estar. Frisando à Lusa que se exprimia "a título rigorosamente individual", e não ainda na sua qualidade de presidente da Associação José Afonso, o músico que gravou pela primeira vez com José Afonso no álbum Canto Velho Rumos Novos (1969) argumentou que "a pedra polida ou o mármore do Panteão talvez sejam mais dignos do que a terra numa visão sumptuosa da vida, ou da morte, mas não para uma figura como o Zeca, cuja vida foi marcada pela simplicidade, pela fraternidade humana, pela poetização das coisas simples, como diz o seu irmão João Afonso".

"O Zeca continua a convidar-nos à não-resignação e creio que o ouviremos melhor e que a sua mensagem é mais eficaz se soubermos que a sua voz continua a interpelar-nos do sítio onde está. Com terra, ervinhas e flores", concluiu Francisco Fanhais.

"Posição da família não é impeditiva"

Em resposta à nota da família, a SPA considera que a posição da família "é absolutamente respeitável e digna, mas não impeditiva da proposta" de uma entidade "que tem 93 anos de existência e representa mais de 26 mil autores de todas as disciplinas". Além disso, refere o conselho de administração, a SPA "tem a maior curiosidade em conhecer os argumentos e as posições assumidas pelos deputados portugueses, se o assunto vier a ser debatido na altura própria na Assembleia da República".

Na terça-feira, a SPA assumiu "publicamente o compromisso de lutar por este legítimo e inadiável acto de consagração que deverá coincidir com os 90 anos do nascimento [do músico] e com os 45 anos do 25 de Abril", argumentando ser essa "a homenagem que Portugal deve a quem como mais ninguém o soube cantar em nome dos valores da liberdade, da democracia, da cultura e da cidadania". No comunicado então divulgado, a SPA recordava José Afonso como "uma das figuras mais marcantes da história da vida cultural e artística portuguesa que influenciou as gerações que se seguiram à sua, tanto do ponto de vista artístico como do político e do moral".

No seu novo comunicado emitido esta quinta-feira, a SPA reitera "que o Ministério da Cultura deve reconhecer a obra de Zeca Afonso como património cultural nacional e envolver-se no esforço que pode conduzir à reedição integral da sua obra, assunto que o poder judicial, a família e naturalmente a própria SPA ainda não conseguiram até agora resolver", acrescentando que "tem dialogado regularmente com a família de José Afonso sobre este assunto".

José Afonso nasceu em 1929, em Aveiro, e morreu em 1987, em Setúbal, cidade se encontram sepultados os seus restos mortais, em campa rasa, no Cemitério de Nossa Senhora da Piedade. Em 1983, o então Presidente da República, António Ramalho Eanes, atribuiu a Zeca Afonso a Ordem da Liberdade, mas o cantor recusou-se a preencher o formulário. Onze anos depois, o Presidente da República, Mário Soares, tentou condecorar postumamente José Afonso, mas a sua viúva, Zélia Afonso, recusou, alegando que o músico não desejou a distinção em vida.

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