Sacha Guitry tinha razão

Educado entre aristocratas e a fina flor da cultura e do espectáculo europeus daquele período, incorporou a solenidade e a altivez do meio, e a “sacralização” da figura do artista, do intelectual, do dramaturgo – isso viria a estar nos seus filmes, que são frequentemente histórias de aristocratas, de forma tão exacerbada que contém sempre o germe para a sua irrisão.

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O Meu Pai Tinha Razão, de Sacha Guitry. 1936

Ao ciclo de cinema clássico francês (Grandes Mestres – os Padrinhos da Nouvelle Vague) que tem ocupado os meses de Verão do Nimas, em Lisboa, chega esta semana um nome fundamental e ainda bem menos conhecido (se não o nome, por certo a obra) do que devia: Sacha Guitry. Chega, para já, com um filme – O Meu Pai Tinha Razão, de 1936 – anunciando-se outro para a semana de 13 de Setembro, O Veneno, de 1951. Nos dois casos trata-se, tecnicamente, de estreias comerciais, são filmes que à época ficaram inéditos em Portugal, como aconteceu com a generalidade da obra do realizador, apesar de algumas estreias pontuais (sobretudo do período final, aqueles grandes frescos históricos pejados de vedetas, como Napoleão ou Se Versalhes Falasse, em meados dos anos 1950). Para a grande maioria dos espectadores, e sobretudo para aqueles demasiado novos para terem podido assistir à luminosa integral Guitry que a Cinemateca organizou em 1994, será uma revelação.

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Ao ciclo de cinema clássico francês (Grandes Mestres – os Padrinhos da Nouvelle Vague) que tem ocupado os meses de Verão do Nimas, em Lisboa, chega esta semana um nome fundamental e ainda bem menos conhecido (se não o nome, por certo a obra) do que devia: Sacha Guitry. Chega, para já, com um filme – O Meu Pai Tinha Razão, de 1936 – anunciando-se outro para a semana de 13 de Setembro, O Veneno, de 1951. Nos dois casos trata-se, tecnicamente, de estreias comerciais, são filmes que à época ficaram inéditos em Portugal, como aconteceu com a generalidade da obra do realizador, apesar de algumas estreias pontuais (sobretudo do período final, aqueles grandes frescos históricos pejados de vedetas, como Napoleão ou Se Versalhes Falasse, em meados dos anos 1950). Para a grande maioria dos espectadores, e sobretudo para aqueles demasiado novos para terem podido assistir à luminosa integral Guitry que a Cinemateca organizou em 1994, será uma revelação.

Nota-se frequentemente que a maior parte dos grandes cineastas clássicos, os da geração pioneira, nasceu ainda no século XIX e transportava ainda, século XX adentro, os sinais de uma educação e de uma visão mundo moldada em tempos oitocentistas. Isso é particularmente verdade no caso de Sacha Guitry (1885-1957), que deve ser o cineasta mais ancien régime que alguma vez existiu. Nasceu na corte imperial russa, em São Petersburgo, onde o pai Lucien (talvez o mais reputado actor de teatro francês da viragem do século) estava radicado, e o seu padrinho de baptismo foi o czar Alexandre III, que lhe deu o nome próprio e o tão russo diminutivo de Sacha. Educado entre aristocratas e a fina flor da cultura e do espectáculo europeus daquele período, incorporou a solenidade e a altivez do meio, e a “sacralização” da figura do artista, do intelectual, do dramaturgo – isso viria a estar nos seus filmes, que são frequentemente histórias de aristocratas, de forma tão exacerbada que contém sempre o germe para a sua irrisão (a própria presença de Guitry nos filmes, a vincar o porte aristocrático tanto como vinca a solenidade do estatuto de “autor”, conduz a essa irrisão).

Naturalmente, detestava o cinema quando ele apareceu, como tantos da sua geração e do seu meio considerando-o uma corruptela do teatro, um entretenimento “popularucho” que degradava a única arte popular verdadeiramente séria. A sua primeira experiência no cinema – Ceux de chez Vous, em 1915 – não tinha nada a ver com o teatro nem com a ficção: era um registo (um “documentário”) das visitas “muito lá de casa” do seu pai, e tem hoje um valor inestimável, por conter as poucas, e nalguns casos, as únicas, imagens filmadas de gente como Rodin, Renoir, Monet, Mirbeau, Saint-Saens, Degas ou Sarah Bernhardt. Até 1935, este filme muito sui generis representou a única relação relevante de Sacha Guitry com o cinema.

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O Veneno, 1951

Flash-forward até esse ano, em que tudo mudou. Entre 1935, quando já tinha 50 anos, e 1939, portanto até às vésperas da II Guerra, Guitry tornou-se subitamente um dos mais prolíficos cineastas franceses: 12 filmes em quatro anos, quase todos construídos a partir de peças suas, encenadas ao longo das décadas anteriores, de um modo geral bem conhecidas do público. Era um forma “fácil” – até porque estava sentado em cima do vasto tesouro que era a sua obra teatral – de dar vida nova às suas peças, de cumprir aquele que via como único destino útil do cinema, o de ser “teatro em conserva”. Na primeira fase, Guitry interpretou isto de uma forma quase punk, quer pela rapidez de produção, quer pela forma como parecia ignorar – alegre e voluntariamente – as convenções do naturalismo cinematográfico: embora haja excepções (como Romance de um Aventureiro, em 1936, com um uso originalíssimo da voz off, aliás algo de que Guitry seria um mestre, ou As Pérolas da Coroa, em 1938, uma saga histórica ainda mais derrisória do que as sagas demilleanas), trata-se de “teatro filmado”, apetece dizer que zás-trás-pás, sem disfarce algum, toda a tónica posta na oralidade e nos torrenciais diálogos característicos de Guitry, e na presença dos actores. É disto um exemplo O Meu Pai Tinha Razão, e nem sequer é dos casos mais exuberantes (ou melhores) da produção guitryana deste período. Mas está lá, inteira, esta espécie de franqueza e de frontalidade, juntamente com temas caros a Guitry: o “teatro social”, os condicionamentos de classe e estatuto, o matrimónio e a transgressão, aquela leve (e às vezes um pouco mais pesada) misoginia que não obstante rapidamente se converte numa forma de sublinhar a insegurança masculina, porque mais do que a “mulher infiel” o que está em causa é essa figura clássica, e mais ou menos caricaturalmente sofredora, do “marido enganado”. O Meu Pai Tinha Razão que é a história de um homem abandonado pela mulher e do efeito que esse facto teve na relação do filho com as mulheres (até que a mulher/mãe volta ao lar, passados vinte anos!, para um final inacreditável) integra, certamente, muitas das constantes temáticas de Guitry, mesmo se não é, como dissemos, uma duas exposições mais espectaculares.

Outro flash-forward até 1951, ano de O Veneno. Pelo meio houve a Ocupação e o episódio traumático na vida de Guitry que foi a detenção, na altura da Libertação, por suspeita de colaboração com os nazis (não chegou a haver acusação: será certo que Guitry não “resistiu” activamente, por uma mistura de feitio demasiado fatalista e hábito da “boa vida” de que não viu razões para abdicar, mas não se encontrou prova de colaboracionismo). Mas o episódio deixou-lhe uma amargura marcada: os seus filmes dos anos do pós-guerra são bem menos complacentes com os defeitos da natureza humana (que no pré-guerra ele via com cumplicidade) e nalguns casos, como O Veneno, são tão horríveis com um esgar.

Horrível como um esgar é o matrimónio central no filme, Michel Simon e Germaine Reuver como dois monstros que se odeiam mutuamente ao fim de 30 anos de casamento. Horrível como um esgar é o cinismo social, o alvor de uma sociedade “mediática”, criada sobre aparências e falsidades vistosas, que fica estampado nas cenas do julgamento que se segue ao assassínio (involuntariamente, porque isto era no remoto ano de 1951, Guitry captou alguns aspectos desta “dinâmica” que é hoje bem mais visível e observável). Horrível como um esgar é a forma como Guitry filma a banalização da violência, com os planos dos miúdos que, em paralelo com o julgamento, vão brincando aos assassínios, parricídios, matricídios, e acabam a encenar uma execução numa guilhotina de papel e cartão. É um dos filmes mais cínicos e desagradáveis alguma vez feitos. Mas quem dirá que Sacha Guitry não tinha razão?