Depois do #MeToo, as mulheres de Hollywood agarram o poder atrás das câmaras da TV

A indústria tem-se mostrado mais disponível para incorporar histórias realizadas e protagonizadas por mulheres. E também mais aberta a papéis femininos que contrariam os estereótipos tradicionais.

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GLOW, a série da Netflix sobre um grupo de praticantes de luta-livre, junta várias mulheres à frente e atrás das câmaras DR

Quando Stacy Rukeyser sugeriu pôr uma gestora de capitais de risco à procura de marido na série de ficção Unreal, do canal Lifetime, os responsáveis do canal perguntaram-lhe se podia transformar a personagem numa mulher com um “sentido de feminilidade muito mais tradicional, mais recatado”. "Pediram-me: ‘Talvez ela pudesse ser educadora de infância’”, recordou recentemente a argumentista e produtora numa conferência da Producers Guild of America.

Stacy Rukeyser resistiu e conseguiu impor-se. Como ela, um número cada vez maior de mulheres em Hollywood, galvanizadas pelo movimento MeToo, está a começar a exercer influência atrás das câmaras e a romper com os estereótipos à frente delas.

Após quase um ano de movimento MeToo, os canais estão a enviar mais mulheres para a cadeira do realizador, os estúdios estão a aplicar programas de mentoria e as actrizes estão a insistir em acumular funções como produtoras para terem mais controlo, como indicam alguns dados iniciais e entrevistas com mais de uma dezena de agentes da indústria.

“Estamos a amplificar as vozes que nunca se permitiu que ascendessem na nossa cultura”, diz Melissa Silverstein, fundadora e editora do blogue Women and Hollywood. “Isso vai tornar a nossa cultura, os nossos programas de televisão e os nossos filmes melhores, mais fortes e mais relevantes.” O MeToo e a campanha Time’s Up surgiram em resposta às acusações de assédio e de abuso sexual por parte de vários homens poderosos em Hollywood, que começaram a ser denunciadas em Outubro passado. Mas também serviram para evidenciar a falta de mulheres na indústria, um fenómeno que molda as personagens femininas e as narrativas televisivas.

Para ajudar a mudar isso, Susanne Daniels, responsável de programação original do YouTube, exige que todas as séries da plataforma empreguem um determinado número de realizadoras em cada temporada. No passado, tinha de lutar por isso, exigindo que os produtores contratassem mulheres e encontrando frequentemente resistências. Desde que o movimento MeToo começou, têm sido mais receptivos. “Tenho de lutar um bocadinho menos”, disse.

Os produtores tendem a argumentar que há poucas realizadoras com experiência por onde escolher. Isso levou a NBC a tentar aumentar o universo de talentos com a iniciativa Female Forward, que permite que as profissionais em início de carreira acompanhem um realizador de uma série da NBC e assinem pelo menos um episódio.

Há já alguns primeiros indícios de que o esforço pela diversidade de género está a fazer a diferença. Catorze dos 42 episódios-piloto de séries dramáticas encomendados nesta Primavera pelos canais generalistas americanos foram realizados por mulheres, escreve o site Deadline Hollywood, um aumento em relação ao ano anterior, em que apenas um foi realizado por uma mulher. E os produtores estão a constatar que há mais interesse em personagens femininas mais complexas, com os argumentistas a regozijarem-se com a liberdade acrescida para representar mulheres para além dos estereótipos, diz Nina Tassler, antiga responsável da CBS Entertainment, que abriu uma produtora destinada a contar histórias mais diversificadas. “Ter uma boa vilã é tão interessante e tão importante quanto ter uma heroína”, defende.

Um caminho a percorrer

Ainda assim, o consenso é que Hollywood ainda tem um longo caminho a percorrer.

Na temporada televisiva 2016-17, as mulheres preenchiam apenas 28 dos papéis de bastidores nas funções de criação de séries, realização, argumento ou produção, de acordo com o Center for the Study of Women in Television and Film da Universidade Estadual de San Diego. Quarenta e dois por cento dos papéis com falas eram de mulheres. Os dois números quase não sofreram alterações em relação aos quatro anos anteriores. Os dados relativos à próxima temporada ainda não estão disponíveis.

A actriz Alison Brie, que protagoniza a série do Netflix GLOW, sobre um grupo de praticantes de luta-livre, diz que é refrescante trabalhar numa produção com duas showrunners, várias realizadoras, um elenco de mulheres de diversas origens e personagens multidimensionais. Mas quando não está a filmar GLOW, a actriz que já foi nomeada para os Globos de Ouro vê um espectro de papéis disponíveis que a desilude.

“Muitas das personagens que li [em guiões propostos] não têm falhas, são rapariguinhas de que todos gostam, com muito bom senso”, disse Brie num evento do Netflix. “Elas querem mesmo um homem na sua vida, e é esse o seu maior objectivo.” A actriz diz que a sua reacção a isso é aderir a projectos que estejam ainda na fase inicial de desenvolvimento e pedir para trabalhar neles como produtora, um papel que tradicionalmente permite dar um maior contributo criativo.

“Em teoria, isso dar-me-á o poder de me assegurar de que as personagens que vou interpretar são um pouco mais bem delineadas e atraentes”, disse.

Stacy Rukeyser conta que os responsáveis do canal Lifetime acabaram por acolher a sua visão para uma personagem feminista em Unreal. Um representante do Lifetime não respondeu ao pedido de reacção da Reuters. Rukeyser também está, com outras colegas, a promover a hashtag #ShowUsYourRoom, para promover a diversidade nas salas dos argumentistas. Embora seja demasiado cedo para declarar vitória, vê o princípio de uma mudança.

“Propus séries no passado que os responsáveis dos canais argumentavam serem 'demasiado femininas’. Não sei se algum deles teria coragem de dizer isso hoje.”

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