A nova música do Cairo tem um rosto: Nadah El Shazly

É filha da Primavera Árabe e um dos principais rostos de uma nova geração de músicos e activistas egípcios. A estimulante música aventureira de Nadah El Shazly foi sentida na Estalagem da Ponta do Sol na Madeira.

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Alan Chies

Passeia ao final do dia, na marginal da pequena vila da Ponta do Sol, a meia hora de carro do Funchal, na Madeira, podendo ser facilmente confundida com uma autóctone. Às tantas diz-nos que aquele local idílico lhe evoca as férias em família, na juventude, no Egipto natal. “Viu os rapazes a mergulhar das escarpas?”, pergunta, discorrendo sobre a luz, o casario, a omnipresença do mar e as longas passagens do dia para a noite.

Nadah El Shazly tem 29 anos. É cantora, compositora e produtora. Lançou o álbum de estreia no final do ano passado, Ahwar. Uma obra fascinante, uma música aventureira, expansiva e sonhadora, alicerçada em elementos como o jazz mais livre, o psicadelismo, electrónicas abstractas ou elementos árabes tradicionais. Não é de apreensão imediata. Exige imersão. Mas quando se chega lá é fácil ficarmos presos naquele rendilhado de elementos circulatórios. Ou na voz – que muitos comparam a Annette Peacock ou Björk – que acompanha o som, por vezes, como se fosse mais um instrumento. Ou na colisão de sons desarticulados, mas que acabam por provocar uma sensação de hipnose. Parece música encantatória das mil e uma noites, mas sem que a ideia pareça chavão.

Desde que lançou o álbum de estreia que, na Europa, simboliza a emergência de uma série de novos músicos e activistas, sediados no Cairo, filhos da onda revolucionária que ficaria conhecida entre 2010-11 como Primavera Árabe, e que têm proposto uma música libertária com características singulares. Existem traços reconhecíveis (electrónicas, rock, hip-hop ou folk) mas acima de nota nota-se vontade de experimentar. “Não existe propriamente algo que nos una em termos sonoros, mas liga-nos a procura, a vontade de fazer coisas em conjunto e talvez essa visão sem espartilhos da música”, reflecte. “É uma cena pequena, mas com muita vitalidade, sempre com gente nova a aparecer, como Zuli, The Invisible Hands, Lekhfa, Abyusif ou Karim El Ghazoly. Alguns estão mais próximos das estruturas electrónicas, mas existe grande diversidade.”

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Xavier Araújo

Nos últimos meses ela ganhou visibilidade. O álbum foi bem recebido. Foi capa, em Julho, da bíblia das músicas mais aventureiras, a revista inglesa Wire. E têm-se sucedido as actuações pela Europa. “Tem sido uma surpresa esta aventura. Tenho viajado imenso. Quem diria que um dia viria dar um concerto neste lugar meio perdido no oceano e ao mesmo tempo tão tranquilo”, ri-se, olhando em redor. O mesmo nos dizia no ano passado Sevdaliza, quando ali se estreou em Portugal. Ou Bianca Casady (CocoRosie), Thurston Moore ou Anna Meredith, que ali actuaram em anos anteriores, no âmbito dos Concertos L, iniciativa da unidade hoteleira e espaço cultural Estalagem da Ponta do Sol, que decorre todos os anos entre Julho e Setembro, e que acaba por surpreender quase sempre cá lá vai. Pela beleza do local. E pelo inusitado da iniciativa.

A meio de Agosto, para receber Nadah El Shazly, numa noite com curadoria do espaço lisboeta ZDB, lá estava o jardim central da Estalagem completamente cheio, cerca de 600 pessoas, para ver uma cantora que não tem música fácil para propor e que era uma desconhecida para a maioria. Mas o desafio é esse. Deseja-se ali mostrar música que por norma não chega àquelas latitudes (e por isso ali se fará ouvir ainda em Setembro a electrónica do suíço Pyrit ou a soul da americana Aisha Badru), misturada com alguns nomes mais reconhecíveis, como Sara Tavares.

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A acompanhar El Shazly, na voz e teclados, um contrabaixista e um multi-instrumentista, que se foca essencialmente na guitarra mas também em ritmos vários. O espaço convida à evasão. Há pufos, uma iluminação ténue, pessoas, em pé, sentadas ou deitadas, envoltas na natureza. Aquela música entorpecedora, e o imaginário misterioso que evoca, encaixa de repente na perfeição da noite. Os sons folk arábicos, com qualquer coisa de ancestral, unem-se a formas contemporâneas intricadas, mas são um corpo só. O território das músicas do mundo está longe. Isto é outra coisa. Um som electroacústico tão evanescente quanto emaranhado, nem jazz, nem electrónicas, nem folk, mas tudo isso também, com a voz intensa a submergir o lugar em espirais de som.

Umas horas antes explicava-nos como se desenvolveu o longo processo criativo do disco, começando por dizer que não existe propriamente uma temática que acompanhe os temas, embora fale de uma atmosfera global conectada com o título da obra, Ahwar (pântano). “A sequência das canções pretende criar um ambiente de risco e mistério. É uma viagem a uma zona que é desconhecida e onde nos podemos perder. Mas é uma coisa sonora, não tanto lírica. Não existe um tema específico ao nível das letras. É o meu primeiro álbum. Havia muitas coisas que queria comunicar – som e palavras – e que se acumulavam há anos. Não foi por isso um procedimento coeso. É como se fosse algo que estivesse a ser fermentado.”

Nasceu e cresceu no Cairo. Foi a mãe que a motivou a aprender piano e depois a ter treino vocal, ainda com idade juvenil. No entanto, ela, que acabou por se formar em Psicologia, quando um dia se virou para mãe, anos mais tarde, dizendo-lhe que era a música que iria abraçar, não ouviu do outro lado palavras de compreensão. “Não é fácil criar condições para se viver da música no Egipto, por isso não foi fácil convencê-la da minha decisão.” No entanto a música sempre a acompanhou. Tanto fez parte de uma banda punk, Sick Gdrch, aos 17 anos, como se tornou cantora jazz de hotel em 2009, antes de integrar os Shorba, numa linha já mais próxima do que faz hoje.

Depois, foi fazendo a sua música de forma mais solitária e conhecendo outros músicos, como Maurice Louca, dos Dwarfs of East Agouza, e Bikya, para além de fazer parte dos Lekhfa, que passaram este ano pelo Festival Músicas do Mundo de Sines. Todos colaboram com todos. De alguma forma foi assim que o álbum de estreia foi sendo feito. “No início, porque andava sempre entre concertos, ia compondo de forma solitária, mas depois Maurice Louca, porque estava sempre próximo, acabou por ajudar imenso.” O mesmo viria a acontecer quando conheceu o líbio Sam Shalabi (que também faz parte dos Dwarfs of East Agouza, com Alan Bishop), líder do ensemble canadiano Land Of Kush, o que a levou até Montreal. “Estava muito interessada em gravar com ele e isso acabou por acontecer, em parte porque achava que havia momentos neste disco que dependiam da capacidade de improvisação e se existe alguém que percebe do assunto é mesmo Sam.”

No final, feitas as contas, acabaram por participar no disco 22 músicos. Ao vivo, tanto é capaz de se apresentar sozinha, apenas com teclas e computador (como aconteceu em Lisboa e Porto em Abril), como com dois ou três músicos, como no caso da Madeira. A capacidade de adaptação faz parte da actividade. “Não existem condições ideais. No Cairo confrontamo-nos com isso diariamente. Hoje já existem locais para tocar, mas as condições de adaptabilidade são uma constante. Mas não é por isso que as coisas não vão acontecendo”.

Uma das suas grandes paixões é música arábica do início do século XX, o que acabou por influenciar as suas composições e melodias. “Por vezes quando dou por mim a procurar música tão antiga interrogo-me se não estarei a ser nostálgica. Mas depois fico de boca aberta. Na verdade aquilo que vou ouvindo soa-me a música futurista.”

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"Não é nada fácil ser-se músico no Cairo. Não é fácil ser seja o que for no Cairo." Alan Chies

Faz sentido o que diz. No fim de contas a sua música é tão marcada por singulares formas contemporâneas como pelas canções ancestrais egípcias, sem que se consiga perceber o que é o quê. É uma realidade una. “A minha música reflecte imensas influências. No meu álbum fui marcada por imensas coisas diferentes. Não queria deixar nada de fora. Mas a principal inspiração é o Cairo e o que se passa lá na actualidade em termos de música. Dito isto, é preciso ver que o Cairo tem uma vasta história. É uma das capitais de cultura. É um mundo com muitos mundos. Mas, sim, sinto-me conectada com outros músicos que estão a operar hoje no Cairo e que não têm grandes estruturas por trás, mas sabem o que querem e têm um grande sentido de entreajuda.”

O facto de agora alcançar reconhecimento fora de portas podia levá-la a pensar em abandonar o Egipto. Mas não. Em 2011, quando a Praça Tahrir se tornou no palco de protestos que clamavam contra décadas de corrupção, desemprego ou censura, ela estava lá. Depois, o Presidente Mubarak foi deposto e, desde então, o país tem estado em constante tensão. Tem havido altos e baixos. E ela tende a considerá-los normais.

“É um processo. Uma revolução nunca é um momento. É um acumular de sinais e sintomas. Foi assim antes de 2011 e está a ser assim agora. Quero participar disso à minha maneira. De alguma forma a música que tem sido feita no Cairo nos últimos anos só é possível por causa da nossa história recente, mas mais do que as tensões sociais aquilo que nos alimenta é uma aprendizagem comum. É essa troca. É como se estivéssemos a erguer uma realidade paralela com a nossa arte. Mas não é nada fácil ser-se músico no Cairo. Não é fácil ser seja o que for no Cairo.”