EUA deportam antigo guarda nazi para a Alemanha

Jakiw Palij, 95 anos, diz que nunca matou, mas basta ter trabalhado num campo para ser responsável pelos crimes. Agência alemã tenta, em contra-relógio, levar à Justiça os últimos cúmplices no Holocausto.

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O visto de 1948 de Jakiw Palij Reuters

Antes das Forças Aliadas libertarem a Alemanha nazi e os sobreviventes dos campos da morte de Adolf Hitler, há mais de 70 anos, dezenas de milhares de criminosos nazis que estiveram directamente envolvidos no Holocausto desapareceram.

Alguns fugiram para o estrangeiro. Outros esconderam-se em cidades alemãs, vivendo em casas de pessoas que durante o regime de Hitler teriam enviado para a morte.

Poucos enfrentaram a justiça – até agora, talvez.

Pelo menos 23 criminosos nazis que se suspeita terem trabalhado nos campos de concentração já tinham sido acusados na Alemanha e na Áustria em Junho, o que comparado com décadas anteriores é um novo recorde, de acordo com um documento que procuradores alemães partilharam com o Washington Post.

Nesta terça-feira, esse número aumentou, quando a Casa Branca anunciou que tinha deportado Jakiw Palij, agora com 95 anos e que é o último guarda de campo de concentração nazi a viver nos Estados Unidos de que se tem conhecimento.

O homem que residia em Queens, um bairro de Nova Iorque, foi detido na segunda-feira e deportado para a Alemanha na manhã desta terça-feira, de acordo com a embaixada dos Estados Unidos em Berlim. Segundo o jornal alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung, Palij foi levado para um lar assim que chegou à cidade de Dusseldorf.

Num comunicado feito nesta terça-feira, fontes oficiais dos EUA disseram que a deportação resultou das negociações do “Presidente Trump e da sua equipa” e “os esforços colectivos com um aliado europeu importantíssimo”, a Alemanha.

Palij nasceu no que é hoje a Ucrânia mas que na época fazia parte da Polónia.  Depois do fim da II Guerra Mundial, trocou a Europa pelos Estados Unidos, onde se tornou cidadão em 1957 ao esconder o seu passado nazi. Porém, há 17 anos, em 2001, Palij admitiu o seu envolvimento com as SS, a temida organização paramilitar de Hitler.

Os procuradores argumentam que os documentos comprovam que Palij participou no Holocausto, em que mais de seis milhões de judeus e milhões de outras vítimas morreram.

Em 2001, Palij admitiu aos funcionários da Justiça norte-americanos que treinara no campo de treino das SS na cidade de Trawniki, onde as equipas tinham formação específica para participar no Holocausto. O homem de 95 anos também trabalhou no campo de trabalho forçado em Trawniki no ano em que os nazis ali massacraram seis mil judeus. Palij afirma que não matou ninguém.

As autoridades retiraram-lhe a cidadania americana em 2003, e o antigo guarda nazi perdeu um recurso dois anos depois. Mas problemas burocráticos arrastaram o processo até agora uma vez que não se sabia para que país Palij devia ser deportado. Os três países europeus envolvidos no caso – Alemanha, Ucrânia e Polónia – recusaram-se a aceitar Palij.

O anúncio desta terça-feira por parte dos Estados Unidos indica que a Casa Branca pressionou a Alemanha nos últimos meses para que a deportação acontecesse.

Na Alemanha, Palij será um de duas dúzias de suspeitos nazis cujos casos estão agora sob investigação por parte da agência que se dedica aos crimes nazis no país, com sede em Ludwigsburg, ou que já foram transferidos para procuradores locais que estão agora encarregados dos casos.

Todos os suspeitos da agência têm agora 90 anos ou mais, e alguns provavelmente morrerão antes de serem julgados ou declarados incapazes de enfrentarem julgamento. Mais de 70 anos depois, há pouco tempo a perder: esta poderá ser a última hipótese para que criminosos nazis enfrentem a justiça por crimes que continuam a representar o pior da humanidade.

Quantos mais indivíduos serão acusados depende principalmente de Jens Rommel, o sexto procurador-geral para os crimes nazis. “Todos os meus cinco antecessores assumiram que seriam a última pessoa neste cargo”, disse Jens Rommel. “Apesar de tudo, nos últimos anos fizemos progressos extraordinários”.

É uma espantosa reviravolta, dado que havia poucos motivos para entusiasmo há apenas uns anos, depois de durante décadas a Justiça alemã ter enfrentado obstáculos que tornavam impossível acusar formalmente suspeitos, apesar das provas que existem sobre o seu passado nazi.

“Até 1960, os únicos crimes da época nazi que os procuradores podiam utilizar para acusar alguém eram o crime de assassínio ou de cumplicidade,” explicou no ano passado Elizabeth Barry White, historiadora do Museu Memorial do Holocausto em Washington. Oficias nazis de alta patente eram muitas vezes acusados de crimes menores porque a sua responsabilidade directa na morte de um ou mais indivíduos não podia ser comprovada devido à apertada jurisdição alemã. Em muitos casos, guardas ou soldados, como Palij, nem sequer eram acusados.

“Como o tempo foi passando e os culpados que ocupavam altos cargos foram morrendo, o número de acusados foi-se reduzindo até só permanecerem os indivíduos cujos crimes eram mais difíceis de comprovar”, disse White. Era necessária uma nova estratégia, e esta surgiu depois de um tribunal ter condenado o antigo guarda nazi John Demjanjuk, em 2011.

Antes de 2011, os procuradores tinham de arranjar provas de que os guardas tinham morto eles próprios judeus ou opositores dos nazis. Mas o veredicto de Demjanjuk baseou-se em factos profundamente diferentes: a mera presença num campo de extermínio nazi foi suficiente para atribuir responsabilidade pelas mortes.

Demjanjuk recorreu mais tarde mas morreu antes de o tribunal poder avaliar o seu recurso. A viabilidade do novo enquadramento legal só ficou comprovada há dois anos, quando outro antigo guarda perdeu o recurso depois de ter tido uma sentença semelhante.

Na altura, muitos recearam ser a última.

Se este veredicto tivesse surgido anos antes podia ter assegurado a condenação de centenas de guardas. Apesar disso, o aumento recente no número de investigações suscitou novo optimismo entre os procuradores alemães, disse o procurador-geral Rommel, sentado no seu escritório em Ludwigsburg cheio de livros sobre os julgamentos de Nuremberga e um mapa da Alemanha da II Guerra Mundial.

Rommel e os colegas dependem maioritariamente de documentos encontrados em arquivos, monumentos ou antigos campos de extermínio. Os oito investigadores da equipa comparam ao pormenor os registos de equipamentos ou listas de doentes para estabelecer a identidade de um suspeito. Quando encontra uma possível correspondência, a equipa de Rommel verifica se o indivíduo ainda está vivo.

“Em 95% dos casos, isso não acontece,” disse Rommel.

Na cave da agência, estão guardadas dezenas de milhares de documentos em papel que incluem detalhes sobre os condenados ou pistas que eventualmente poderão identificar mais suspeitos. É a base de dados mais completa a nível mundial sobre criminosos nazis.

Mas como as autoridades alemãs assumiram que o número de casos activos iria diminuir, os arquivos nunca foram digitalizados. Na agência, a burocracia não é o único desafio. Os casos abrandaram porque a agência apenas lida com investigações em fase inicial e que depois passam para os procuradores locais. “Os procuradores demoram a rever e compreender as provas e, dada a idade dos suspeitos, a sua capacidade de enfrentarem julgamento pode mudar muito rapidamente, pelo que o que era um caso promissor pode tornar-se impossível de julgar da noite para o dia,” explicou a historiadora White.

Os investigadores não sabem até quando poderão continuar com o seu trabalho devido à idade avançada dos suspeitos identificados.

Andando pela sede da agência, cercado por milhares de fichas com detalhes sobre os criminosos nazis que ele e os seus antecessores perseguiram, Rommel reconhece que o trabalho exerce o seu peso nos investigadores, especialmente agora que o tempo escasseia.

“Não levo documentos comigo para casa. Não seria capaz de os pousar,” disse.

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

Tradução de Ana Silva

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