Alemanha desbrava caminho de reconhecimento do terceiro género

Tema tem sido discutido em diversas partes do mundo. Ainda há pouco, esteve em cima da mesa em Portugal.

Foto
Sibila Lind

A Alemanha aceita que a menção ao sexo fique em branco no registo de nascimento e está a preparar-se para acolher a possibilidade de sexo "diverso" ou "outro". O diploma foi aprovado pelo Governo na quarta-feira e terá de ser votado na Câmara dos Deputados ainda este ano.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

A Alemanha aceita que a menção ao sexo fique em branco no registo de nascimento e está a preparar-se para acolher a possibilidade de sexo "diverso" ou "outro". O diploma foi aprovado pelo Governo na quarta-feira e terá de ser votado na Câmara dos Deputados ainda este ano.

Não é uma iniciativa pura do executivo formado pelos conservadores (CDU e CSU) da chanceler Angela Merkel e pelos social-democratas (SPD). É a transposição de uma decisão judicial.

Desde 2013, as pessoas intersexo podem corrigir o registo civil, pedindo que a menção ao sexo fique em branco. Uma delas lutou nos tribunais pela possibilidade de mudar o assento de nascimento de feminino para “inter” ou “diverso”. E forneceu uma prova genética de que não é homem, nem mulher.

Analisado o caso, o Tribunal Constitucional concluiu que não ter género feminino, nem masculino não é igual a não ter género, todos os seres humanos têm género. “A atribuição de um género é de suma importância para a identidade individual; Normalmente, desempenha um papel fundamental tanto na auto-imagem como na maneira como cada pessoa é percebida pelos outros. A identidade de género das pessoas que não são nem masculinas nem femininas deve ser protegida", decidiu o tribunal, exortando o legislador a encontrar forma de o país deixar de ter a menção ao sexo no registo civil ou permitir que pessoas com características semelhantes escolham “intersexo”, “diverso” ou “outra designação positiva do seu sexo que não seja masculino ou feminino”.

De quem se está a falar? As Nações Unidas estimam que entre 0,05 e 1,7% dos bebés não encaixe no ideal de menino ou menina. Os seus cromossomas, gónadas ou órgãos sexuais internos ou externos diferem do que é esperado. Alguns traços (como a genitália externa atípica) notam-se logo. Outros (como gónadas ou cromossomas) só se percebem na puberdade ou mesmo mais tarde (por exemplo ao investigar causas de infertilidade). 

Há, porém, que fazer uma ressalva: as características corporais de cada pessoa não se podem confundir com a sua identidade; uma pessoa intersexo, como qualquer outra, pode ter uma identidade de género feminina, masculina ou diversa. Só uma pequena parte tem uma identidade de género não binária. 

Diversos países, como é o caso de Malta, já reconhecem marcadores legais de género neutro. Outros, como a Nova Zelândia, a Austrália e a Índia, permitem um terceiro género. Nos últimos anos, o tema tem sido discutido em diversas partes do mundo. Ainda há pouco, esteve em cima da mesa em Portugal.

Seguindo recomendações internacionais e apelos nacionais, o Governo português decidiu propor legislação a proibir a prática das cirurgia “correctivas” e/ou os tratamentos em crianças intersexuais. A lei que reconhece o direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e o direito à protecção das características sexuais foi promulgada pelo Presidente da República no final de Julho.

A ideia de terceiro género foi introduzida pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. “Sendo o sexo um elemento obrigatório no assento de nascimento, não encontramos resposta no projecto sobre qual o sexo biológico que será atribuído às crianças intersexuais que não foram sujeitas a cirurgia/tratamento”, referiu no primeiro parecer que emitiu. “Uma vez que o projecto não contempla um terceiro género ou um marcador legal de género neutro e que o registo civil continua a assentar no modelo binário alicerçado no sexo biológico dos indivíduos”, os pais terão de declarar se a criança “é menino (homem) ou menina (mulher)”. E isto, na apreciação do Conselho Nacional de Ética, traduz-se “numa adulteração da identidade civil e numa violação do direito à identidade de género que se pretende acautelar”.

O assunto está longe de ser consensual. O Governo ouviu outras entidades. E seguiu a linha que pressupõe que criar um género neutro ou abrir a possibilidade dessa informação ficar em branco é aumentar a pressão para tratamentos ou cirurgias e expor as pessoas, o que acarreta maior risco de discriminação.

A Organização Internacional de Intersexuais e as organizações que lhe são próximas não reclamam um terceiro género ou um género neutro, como já explicou um dos co-fundadores, Vincent Guillot. Pedem que seja abolida a menção ao sexo no registo civil e nos documentos, como aconteceu com a etnia ou a religião. E é essa a posição que está a ganhar terreno em Portugal.

Isso viu-se em Abril deste ano. Aprovada a lei da autodeterminação de género, Marta Ramos, da direcção da ILGA, avisou que a luta não acabara e que caminhará no sentido da abolição de marcadores de género. “O BI não tinha marcador de género, o Cartão de Cidadão é que o veio introduzir nos documentos de identificação, o que colocou mais um problema às pessoas 'trans' que até então se reduziam ao nome e à fotografia", declarou ao PÚBLICO.

Na Alemanha, há activistas que aplaudem o diploma, entendendo que vai na direcção certa. E outros que o criticam, entendendo que exigirá testes “invasivos” às pessoas intersexo e pouco ou nada mudará na vida das pessoas “trans”.