E se a sua biblioteca privada fosse de todos nós?

Chama-se BiblioSol e é uma das propostas em votação no Orçamento Participativo Portugal. A ideia é simples – abrir as bibliotecas privadas ao usufruto público – e nasceu de uma constatação de Renato Soeiro: "A quantidade de livros que podiam ser tão úteis e que passam a vida fechados nas estantes...".

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Renato Soeiro é um dos dois proponentes da BiblioSol PAULO PIMENTA

A ideia surgiu (não só, mas também) porque Renato Soeiro sabe muito bem o que é ter uma grande biblioteca em casa e sabe muito bem o quanto ela poderia ser útil se mais pessoas, além de si e dos seus próximos, tivessem acesso ao que contém. A ideia surgiu porque Renato sabe que não está sozinho. “A quantidade de livros que há na casa das pessoas que podiam ser tão úteis e que passam a vida fechados nas estantes...”, lamenta ao PÚBLICO. Para esta ideia, que ganhou o nome BiblioSol – Rede Cooperativa de Leitores e é agora candidata ao Orçamento Participativo de Portugal, instrumento cuja votação decorre on-line até 30 de Setembro, contribuiu outra constatação: “Tanta gente, nomeadamente estudantes, tem de fazer longos percursos até uma biblioteca para ler o livro que pretende quando, se calhar, tem a morar ao lado uma pessoa que lho emprestava.”

A BiblioSol, explica Renato Soeiro, um dos proponentes, com César Silva, deste projecto (os dois tinham propostas semelhantes, que acabaram fundidas), pretende funcionar como uma rede através da qual as bibliotecas e os arquivos privados do país poderão abrir-se à comunidade, “sem prejuízo da propriedade e do usufruto do proprietário”.

O método idealizado para pôr a BiblioSol em prática é da maior simplicidade. Cada proprietário, assim o deseje, inscreve a sua biblioteca na rede, deixando o seu contacto e a sua morada e disponibilizando-se a ser abordado por leitores, também eles inscritos na rede, e devidamente autenticados para protecção dos espólios, em busca de obras ou áreas de saber específicas. Dessa forma, eliminam-se distâncias – “no fundo, é aquele velho projecto das bibliotecas itinerantes da Gulbenkian, que levavam os livros a casa das pessoas” –, abre-se um rico e diversificado património privado à comunidade – “há espalhadas pelas vilas e aldeias, principalmente nas velhas casas senhoriais, colecções fantásticas de livros antigos que estão ali perdidos e que acabam por não servir para rigorosamente nada” – e, pormenor muito importante para Renato Soeiro, abrem-se portas a uma relação de proximidade, humanizada, entre o leitor e este novo bibliotecário.

“Alguém que está a fazer um estudo sobre uma qualquer temática descobre na rede quem tem os livros que lhe interessam e põe-se em contacto. Quem empresta pode introduzi-lo ao livro, sugerir outras obras, fazer aconselhamento na investigação”, ilustra Renato Soeiro: “Permite uma relação que pode ser engraçada nos dois sentidos”, acrescenta este homem de 65 anos, morador em Francelos, Vila Nova de Gaia. Está a pensar, por exemplo, num velho professor jubilado que passa o seu saber a um jovem estudante e imagina este a retribuir, dando conta ao velho professor das novidades da área na qual aquele trabalhou toda a sua vida.

O apoio estatal solicitado na candidatura ao Orçamento Participativo de Portugal é de 70 mil euros e será canalizado para a criação do site que agregará a rede idealizada por Renato Soeiro e César Silva e para o apoio técnico posterior indispensável à catalogação das bibliotecas privadas aderentes, um esforço que os proponentes imaginam coordenado com a Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas.

Além das vantagens já elencadas, garantia-se assim uma outra. Há algumas semanas, na sua crónica semanal no PÚBLICO, escrevia Pacheco Pereira: “Livros são uma das coisas que nos nossos dias têm mais probabilidade de ir parar ao lixo. Não exagero, é mesmo assim. As razões são cada vez mais habituais: despejos ou mudanças de casa sob a pressão das novas rendas e leis do inquilinato, e as novas casas por sua vez não têm espaço para os livros, divórcios, falecimentos, e ‘os meus filhos não se interessam por isto’”. Ora, com a rede instalada e a informação sobre os conteúdos destas bibliotecas publicamente disponível, Estado ou privados poderiam investir na preservação de acervos de relevo quando desaparecerem os seus proprietários. Renato Soeiro tem em casa, por exemplo, uma vasta colecção de filosofia e epistemologia reunida pelo professor Armando de Castro (1918-1999) que não encontrara lugar quer junto da família, quer na biblioteca da Faculdade de Economia da Universidade do Porto, baptizada com o nome do advogado e economista. “Como me dava muito bem com ele, telefonaram-me e lá fui. Trouxe uma carrinha cheia do chão ao tecto com todos os livros dele de filosofia e epistemologia, com os seus apontamentos a lápis, o que é delicioso. É bom que se ponha à disposição de quem quiser.” Este é ponto fulcral.

"O que mais ninguém tem"

A história da biblioteca especializada de Armando de Castro, numa área que não se lhe associaria automaticamente, tem-na Renato Soeiro repetida, com outros nomes e noutros âmbitos. A sua biblioteca e arquivo, que se dedicará agora a “arrumar e catalogar, depois de anos de acumulação”, inclui abundante documentação sobre o movimento estudantil durante a vigência do Estado Novo, o que motivou, de resto, permutas com a Ephemera de Pacheco Pereira. Inclui também o material que foi recolhendo nos anos em que trabalhou no Parlamento Europeu em Bruxelas, enquanto membro do secretariado político do Grupo Confederal da Esquerda Unitária Europeia / Esquerda Nórdica Verde e da Comissão Executiva do Partido da Esquerda Europeia, ou enquanto coordenador europeu da Esquerda Anti-Capitalista Europeia. “Às vezes os arquivos até são mais importantes do que os livros. Os livros são produzidos em grandes quantidades, os arquivos, os papéis, são mais perecíveis”, assinala.

Como em tudo, claro que há excepções. E a de que o proponente da BiblioSol nos fala exemplifica na perfeição o que se pode ganhar com as bibliotecas privadas que se pretende abrir. Durante alguns anos, Renato Soeiro criava com um escritor e poeta uns "livrinhos" especiais, em edição reduzidíssima e não comercial, que ambos distribuíam aos amigos no Natal. Algures em Dezembro, o poeta e escritor corria as ruas do Porto, pela noite, e deixava a obra exclusiva, com inéditos da sua autoria, nas caixas de correio das amizades contempladas. “O engraçado é que, certa vez, num programa de televisão de balanço literário de fim de ano, o [professor e ensaísta] Arnaldo Saraiva disse que um dos melhores livros do ano era um desses livrinhos que fazíamos. Gerou-se uma enorme confusão porque as pessoas iam às livrarias, procuravam e ninguém encontrava o raio do livro.”

O escritor era Manuel António Pina (1943-2012) e os “livrinhos” encontram-se na biblioteca de Renato Soeiro. Talvez um dia, se a BiblioSol se tornar realidade, um jovem estudioso da obra de Pina lhos requisite. Este poderá depois encaminhá-lo para uma raridade chamado La Nuit, pequena edição de 95 exemplares, em francês, que o autor de Cuidados Intensivos imprimiu com Renato Soeiro para oferecer numa feira do livro de Bordéus. Poderá mostrar-lhe mais ainda. “Além de ter sido muito meu amigo, [Manuel António Pina] é alguém com quem trabalhei numa actividade que não está divulgada, a de publicitário. Como todos os grandes poetas, também trabalhou uns anos em publicidade.” Juntos, criaram campanhas para a Apple, por exemplo, e Renato Soeiro guardou mais do que as memórias das “divertidas sessões nocturnas de criação publicitária”, de que dará conta, em Setembro, em conferência que apresentará na próxima Feira do Livro do Porto. “Tenho os apontamentos de tudo isso, dos textos, dos manuscritos, caixas e caixas de arquivos. Os livros muita gente terá, isto de certeza que mais ninguém tem.”

A BiblioSol quer justamente que não se perca o "que mais ninguém tem". Para que todos tenham acesso às riquezas do património que tantos guardam entre portas. Para que a cadeia do conhecimento se propague, de leitor para leitor.

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