A ruptura com Ricardo Salgado

Ricardo Salgado queria controlar a Semapa. No início do século XXI surgem os primeiros atritos entre o industrial e o banqueiro.

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Pedro Queiroz Pereira foi o primeiro a perceber que Ricardo Salgado não falava verdade Miguel Silva/Arquivo

A relação de PQP com Ricardo Salgado dá a fotografia da ascensão e da perda de influência do Grupo Espírito Santo, um ícone da década passada, um núcleo importante do poder económico privado que tomou posições em grandes empresas. E a dada altura acreditou mesmo que ia controlar a Semapa, o que lhe dava acesso a recursos, garantia de presença nas grandes operações de compras e fusões, e colocava o BES como financiador. Só que estava lá PQP para o impedir.

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A relação de PQP com Ricardo Salgado dá a fotografia da ascensão e da perda de influência do Grupo Espírito Santo, um ícone da década passada, um núcleo importante do poder económico privado que tomou posições em grandes empresas. E a dada altura acreditou mesmo que ia controlar a Semapa, o que lhe dava acesso a recursos, garantia de presença nas grandes operações de compras e fusões, e colocava o BES como financiador. Só que estava lá PQP para o impedir.

No início de 2000, surgem as primeiras evidências de atritos públicos entre o industrial e o banqueiro. Queiroz Pereira contratara o Banco Santander, e não o BES, para ser o líder do sindicato bancário da OPA que lançara sobre a Cimpor. Semanas depois, o BES surge a assessorar a francesa Lafarge para travar a oferta de PQP sobre a cimenteira.

Mas as suspeitas de que existia uma estratégia delineada para o GES controlar a Semapa só começam a tomar forma em 2002, depois de a irmã mais nova do industrial, Margarida (que se incompatibilizara com o irmão mais velho), ter comunicado que vendera as acções que herdara do pai, Manuel Queiroz  Pereira, a três sociedades (Gaunlet, a Allord e a Relcove). Mas não identifica os proprietários. Semanas depois, o BES apresenta-se como o representante da Gaunlet, da Allord e da Relcove.

A recusa em revelar os nomes dos reais proprietários das offshores acende as suspeitas de que Ricardo Salgado pode estar por detrás da operação, até porque Margarida aparece com cerca de 2% do BES.  

As dúvidas levam Pedro Queiroz Pereira a questionar directamente Salgado sobre a quem pertencem as três empresas que o BES representa, mas este não lhe deu detalhes e apenas o informou de que as acções não estavam à venda e que os donos não queriam ser conhecidos. 

O impasse vai continuar nos anos seguintes e a levantar incertezas quanto às intenções dos investidores que Ricardo Salgado diz apenas serem estrangeiros.

No entremeio, PQP entra na Portucel/Soporcel, o que dará origem ao segundo grande salto de crescimento da Semapa após o 25 de Abril (o primeiro deu-se na década de 90 com a aquisição da Secil). E o BES, aparentemente, não se manifesta.

Foi nesta altura que PQP se cruzou com o então primeiro-ministro José Sócrates, que ouvira rumores de que o empresário planeava construir uma grande fábrica no estrangeiro. E Pedro Queiroz Pereira contou ao PÚBLICO [22 de Dezembro de 2013] que Sócrates o chamou a São Bento: “Dizem-me que quando comprou a Portucel se obrigou a fazer a fábrica em Setúbal”. O empresário confirma que “a fábrica pode ir ou para a Alemanha ou para o Brasil”, pois tem condições mais favoráveis. E Sócrates avisa-o de que a decisão, a ser levada por diante, porá em causa a privatização da Portucel, ao que o industrial lhe expõe os seus argumentos técnicos e o chefe do executivo diz-lhe que vai procurar resolver o problema.

E PQP observou ao PÚBLICO: “É verdade que Sócrates não cumpriu os pontos todos, mas o que me motivou foi ver a grande vontade dele em que a fábrica ficasse cá e em resolver os obstáculos. Subsídios? Recebia em qualquer dos lados.”

Em meados de 2007 a Semapa é agora palco de guerras abertas entre irmãos (Pedro e Maude) e primos (Carrelhas) que chamam a atenção para fora. E mostram que a preocupação de Pedro Queiroz Pereira é conseguir garantir que tem o controlo do grupo. Até porque, desde 2002, as três empresas intrusas continuam no capital, nomeando gestores, mas sem que conheçam os nomes dos proprietários. E isto, apesar de já nessa altura, em certas esferas restritas da Semapa, onde está Pedro Queiroz Pereira, se acumularem os sinais de que os interesses ocultos têm a chancela do BES. E já se fala que Salgado prepara o “assalto à diligência”. 

Nas várias conversas que continua a ter com Ricardo Salgado, PQP insiste que gostaria de falar com os donos das três sociedades que o BES representa. Mas o banqueiro garante sempre o mesmo: as acções não são do BES, que é o mero gestor das empresas, e os seus donos, investidores ingleses e noruegueses, não estavam vendedores, nem queriam ser conhecidos.

Não foi por acaso que Salgado consolidara a sua reputação de que conseguia tudo o que queria. Em 2010, PQP percebe que indirectamente o BES pode estar prestes a controlar a Semapa, o que vai fazer mexer os equilíbrios internos e pôr em causa a estratégia do industrial. As divergências são agora abertas e levam Salgado a dar um passo em frente.

Finalmente, em Junho de 2012, o banqueiro assume que as acções que estão na posse das três offshores (Gaunlet, a Allord e a Relcove) pertencem ao BES, o seu verdadeiro proprietário desde 2002 quando as comprou à irmã mais nova do industrial.

E PQP não perdoou a Salgado ter omitido a informação durante 10 anos e ter tentado por vias ocultas dominar a Semapa. Em 2012, os astros alinharam-se para derrubar o banqueiro, pois nessa altura já são visíveis as tensões dentro do Grupo Espírito Santo.

Para mais o BES vacilava com o impacto da crise financeira e económica, impedindo Salgado de continuar a alimentar de forma generosa os ramos da família e obrigando-o a desacelerar os financiamentos às empresas do GES. E a Semapa deixara de ser uma prioridade para Ricardo Salgado.

Ora Pedro Queiroz Pereira tinha 7% do GES e muita informação do que ali se passava. E sabia das tensões internas e da sua situação de fragilidade financeira.

O quadro preocupava Salgado, o que o levou, nos primeiros meses de 2012, a reconhecer a liderança de PQP na Semapa, mas impondo como condição que o industrial lhe submeta as decisões estratégicas. Mas PQP rejeita, pois o que quer mesmo é o BES fora do grupo. E foi o que propôs a Salgado, que recusa.

E é então que o industrial vem para a praça pública com as armas todas: as holdings do GES lidam com falta de cash e ao BdP chegam dossiês com informação sensível sobre o GES. E Salgado contra-ataca. Os jornais começam também a falar de que os irmãos Pedro e Maude estão em guerra total.

Em Outubro de 2013, tornam-se conhecidas as cisões dentro do GES, com José Maria Ricciardi a aliar-se a PQP e a assumir posições públicas contrárias às de Salgado, cuja idoneidade estava a ser posta em causa depois de se saber que recebera uma comissão de um cliente.

E é a ligação de todos estes acontecimentos que desencadeiam as investigações no Banco de Portugal e levam o presidente do BES a selar um acordo rápido com o industrial, firmado em Outubro de 2013. Parceiros há 80 anos, os grupos Espírito Santo e Queiroz Pereira separaram por fim as águas.

Hoje é possível dizer que se PQP tivesse ficado parado e alinhado com Ricardo Salgado, como tantos outros fizeram, o mais provável é que em 2014, o Grupo Queiroz Pereira estivesse sob controlo do BES. E só o facto de PQP ter desconfiado das intenções do banqueiro, impediu que a Semapa fosse arrastada no colapso do BES.