Anamorphine: jogar uma queda sem rede

Anamorphine é perceber o quanto dói lidar com o desamparo da queda. É um videojogo experimental, que se está a marimbar para os géneros consagrados.

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Para compreender melhor Anamorphine é preciso compreender a forma como o espaço é usado para contar a história. Centrado num apartamento, o jogo dá-nos uma narrativa com dois finais possíveis, qualquer um depois de o protagonista ter passado pelo fogo. Esse apartamento, contudo, é um caleidoscópio que reflecte a passagem do tempo enquanto fractura lenta da existência.

O jogo da Artifact 5 decorre na primeira pessoa, com o jogador a vestir a pele de Tyler. Através desta perspectiva, vamos explorando o cenário e compreendendo o que se passou com Elena, a sua mulher.

A jogabilidade é o deslizar de um analógico para fazer Tyler movimentar-se pelos cenários e o segundo analógico para olhar em redor. Não há desafio, não há trechos que mereçam valores a classificar a jogabilidade como afinada ou desleixada. Há o absorver da experiência, é isso. Se houvesse uma nouvelle vague nos videojogos, Dear Esther tinha chegado lá antes e Anamorphine estaria agora lá.

Sendo uma obra alicerçada no surrealismo, há também a clara mesclagem deste real com outro plano de compreensão: a mente do protagonista.

A temática de Anamorphine é pesadíssima. Elena está em queda livre: excelsa artista, tocava violoncelo até que um acidente é o gatilho para um turbilhão de incapacidades – a incapacidade de criar e de alimentar a fome de arte é, derradeiramente, a incapacidade de viver. Elena cai e Tyler cai com ela.

O jogo tem neste paralelismo o seu ponto mais forte. Há duas personagens diferentes, com personalidades diferentes ainda que unidas pelo amor que dói, mas que são duas formas de entrar numa espiral. A tragédia leva à tragédia, com Anamorphine a permitir testemunhar por entre as memórias, ocasionalmente insufladas ao surrealismo, o que levou a este desaguar.

Ainda que seja curta, a obra permite compreender perfeitamente o acidente de Elena e a sua incapacidade física a motivar a frustração e encerramento mental. Algumas cenas são explícitas, com os momentos mais interessantes a serem as metáforas, os arranjos quase poéticos para encontrar uma forma de fazer o jogador sentir estas angústias.

Anamorphine importa porque, tal como o recente Stay, envereda por temas que não pedem desculpa na hora de afastar o sorriso da cara do jogador. A depressão é a personagem principal, notando-se claramente o minuto fracturante em que o abuso dos comprimidos e do álcool passa a domar os dias, as noites, as vidas. Esse momento estilhaça aquelas vidas, mas quebra também o jogador, fazendo-o prestar atenção.

Esta passagem do tempo por Tyler enquanto nos mostra este afundar, é assinalada por incontáveis dicas gráficas. O tal apartamento pejado de memórias vai-se transmutando com o acumular de garrafas e frascos de comprimidos; vai assinalando a falta de interesse pela vida circundante com a disposição do lixo descuidado. As cores mudam conforme vamos circulando por estas transições que ajustam o cenário ao estado da mente.

O jogo tem muitos pilares abertos à interpretação de cada um, sendo que o denominador comum será sempre o mesmo: a forma como Tyler acaba com duas escolhas distintas, com ambas a serem consequências de duas vivências traumáticas até à falência total da vida. Ou seguem ou ficam, mas o passado nunca poderá ser alterado.

Publicado no PC e na PlayStation 4, o jogo pode ser experimentado em realidade virtual. Esta decisão pode ajudar a explicar o quão fracas são as texturas e o quão paupérrimo é o desempenho. Mesmo terminado na PlayStation 4 Pro, a versão mais potente da consola da Sony, a framerate está constantemente a soluçar – chegando ocasionalmente a parar o jogo durante dois ou três segundos. Os apontamentos gráficos e os detalhes nos cenários também são fracos, e só não atiram com o cômputo geral do campo visual à sarjeta porque o design é astuto.

A banda sonora é sólida. A produtora foi também aqui inteligente. As personagens não falam entre si, todavia, há o som que nos faz prestar atenção e as ondas que repercutem o bang e nos fazem continuar investidos a olhar de soslaio enquanto adivinhamos que está para chegar um momento que perdurará depois do suspense.

Tal como, por exemplo, o excelente What Remains of Edith Finch, também Anamorphine é um videojogo experimental. É uma expansão e adaptação dos géneros consagrados, onde brilham o tema e a forma como este é tratado. Nunca seria um título para os jogadores que querem os ovos no cesto canónico e é claramente um videojogo com falhas facílimas de apontar. Contudo, é mais um exemplo que há produtoras que se estão a marimbar para os géneros consagrados e que colocam a dor ao lume – até a dor ferver.

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