A revelação do Táxi 518

As casas são guardadoras de memórias: as nossas e as de outros que as construíram ou que as habitaram, antes ou depois de nós. As casas também arrumam as memórias, em camadas, para que mais tarde alguém as desfie.

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"O senhor Gilberto Santos, de poucas conversas, dócil e de ar paternal, afirmou que é transmontano e perguntou-me se eu era do Porto." Manuel Roberto

Chovia bastante no Porto quando me ligaram do jornal, nesse fim de tarde, a pedirem-me que fotografasse uma casa classificada como património histórico para os lados da Foz do Douro. Corria o risco de ser demolida. Encontrava-me na Baixa, na Praça de D. João I, pronto para entrar no metro que me levaria até ao meu casulo. Em vez disso, apanhei rapidamente um dos táxis que normalmente prestam serviço especial para o jornal.

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Chovia bastante no Porto quando me ligaram do jornal, nesse fim de tarde, a pedirem-me que fotografasse uma casa classificada como património histórico para os lados da Foz do Douro. Corria o risco de ser demolida. Encontrava-me na Baixa, na Praça de D. João I, pronto para entrar no metro que me levaria até ao meu casulo. Em vez disso, apanhei rapidamente um dos táxis que normalmente prestam serviço especial para o jornal.

Raramente cedo a conversas de táxi quando me olham, me avaliam pela cor da pele e, com algum saudosismo, me perguntam de que ex-colónia sou originário. Costumo dizer que sou da freguesia da Vitória, no Porto. Sabe-me a autodefesa que corta a “converseta” da treta pela raiz para assim me fazer transportar sem inconveniências e sem debates que me fariam apear muito antes do meu destino.

No Táxi 518, tudo foi diferente. A empatia foi quase imediata, logo que o taxímetro começou a rodar. Algo de familiar pairou naquele habitáculo quando o motorista me cumprimentou e lhe disse para onde queria ir.

O senhor Gilberto Santos, de poucas conversas, dócil e de ar paternal, afirmou que é transmontano e perguntou-me se eu era do Porto. Respondi-lhe prontamente que sim, mas que tinha vindo de Moçambique, há cerca de 30 anos, e que me tornara portuense por adopção.

Seguiu-se um breve silêncio quebrado por um tom de voz meio embargado que me diz ter sido obrigado pelas circunstâncias a abandonar com a esposa e dois filhos menores o seu Moçambique em 1974. Lá, já era taxista e acumulava esse trabalho com a agricultura na Machava, onde detinha alguns talhões. Produzia arroz e mantinha umas três centenas de cabeças de gado, nas margens do rio Limpopo.

A voz melancólica tocou-me e, a dada altura, choveu nostalgia no interior da viatura. O senhor Santos habitara um 2.º piso, num prédio de três andares, na Avenida Massano de Amorim, em Lourenço Marques, mesmo ao lado dos Gelados Italianos.

Continuava a chover. Um pequeno relâmpago interrompeu a conversa, iluminando bruscamente os nossos rostos. “Isto não é nada. Os raios que lá caíam eram mesmo de outro mundo!”, observou o motorista.

Pensei no prédio de três andares, ao lado dos Gelados Italianos. “Só havia um e o primeiro andar foi a minha casa, no final dos anos 70 e durante toda a década de 80”, disse-lhe.

Mais um relâmpago que nos abanou o cérebro e iluminou. Olhámos um para o outro, já com cumplicidade.

“Seria para lá do Café Estoril?” perguntei, receando que esta conversa não estivesse a acontecer. “Não, para cá do Café Estoril, na direcção do Hotel Polana”, respondeu ele.

Continuei: “Pois, senhor Santos, tenho quase a certeza de que o prédio a que o senhor se refere foi também meu, ou melhor, era a casa dos meus pais, onde fui criado e muito feliz, durante a minha adolescência.” Arrepiado, perguntei: “Tem mesmo a certeza de que habitou o 2.º andar daquele prédio?” O senhor Santos tinha a certeza.

Entusiasmado, digo: “Essa casa, apesar de tudo, também foi minha, porque morava lá o meu tio Silva. E nós morávamos no andar de baixo. Que dia o meu! Conheço aqueles andares como a palma da minha mão. Tenho de telefonar já ao meu pai, que está em Moçambique, para lhe dizer que estou, neste exacto momento, no carro de um senhor que foi o primeiro morador da casa do tio Silva, no apartamento por cima do nosso!...”

E continuei: “Fui para lá morar pouco depois da independência. Julgo que a minha família foi a primeira a morar no prédio após a sua partida. Entretanto, o Estado tomou conta das casas que foram abandonadas na fase de transição. Foram todas nacionalizadas. Apesar da sua boa intenção, o jovem Estado não tinha condições para cuidar do parque imobiliário, pelo que mais tarde acabou por vender a maior parte dessas habitações aos seus novos inquilinos. Conheci o prédio da Massano de Amorim tinha eu 12 anos. A avenida chama-se agora Mao Tsé-Tung. A fachada do prédio rosa de três andares que ostenta um painel de azulejos com a imagem de uma santa sempre nos levou a crer que o edifício estivesse ligado à igreja. O interior do 1.º andar que mais tarde habitei estava completamente vandalizado e num estado de destruição total. Toda a família teve que pôr mãos à obra para podermos ter um tecto condigno.”

Em pouco mais de meia hora de bandeirada até ao meu destino, dei comigo a sonhar no beliche do meu quarto do 1.º andar, em Moçambique.

Fui fotografando a casa desenhada por um famoso arquitecto, enquanto, a uma velocidade alucinante, viajava até à minha infância e ao prédio de três apartamentos onde parte da minha vida fez todo o sentido.

Observei e registei, debaixo de água, com a ajuda do senhor Santos, que insistia em segurar-me o guarda-chuva, cada linha daquela vivenda de três pisos que fotografava na Foz. Senti-me no prédio da Mao Tsé-Tung, em Maputo. Pela primeira vez na minha vida uma casa ia muito para além do abrigo de cada um, onde nos fechamos em nós, com os nossos e com aqueles com quem queremos partilhar um pouco dos nossos segredos - que só alguns compreenderiam.

As casas são guardadoras de memórias: as nossas e as de outros que as construíram ou que as habitaram, antes ou depois de nós. As casas também arrumam as memórias, em camadas, para que mais tarde alguém as desfie.

O motivo pelo qual o taxista me levou à Foz do Douro acabou por ser uma não-notícia, mas acredito que a coincidência nos quis levar por uma viagem única, no tempo. Para o senhor Santos e para mim, foi um dia ganho.

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"O senhor Gilberto Santos, de poucas conversas, dócil e de ar paternal, afirmou que é transmontano e perguntou-me se eu era do Porto." Manuel Roberto