Kofi Annan quis a medalha de Timor-Leste — e conseguiu

Kofi Annan não chegou ao referendo para a independência de Timor-Leste sozinho. Mas sem ele, e sem a sua proposta inovadora, o sonho teria demorado ainda mais tempo a tornar-se realidade.

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Kofi Annan tinha tomado posse como secretário-geral da ONU há pouco mais de 15 dias quando recebeu em Nova Iorque uma carta de Jaime Gama, na altura ministro dos Negócios Estrangeiros português.

Era sobre Timor-Leste e dizia o que, para alguns diplomatas e políticos em Portugal — não muitos — era uma evidência: a situação era muito grave, era urgente encontrar uma solução política e nada podia ser resolvido sem ouvir os timorenses.

Annan chegou ao topo das Nações Unidas com o rótulo de “amigo dos americanos” e por isso chegou a pensar-se que não ia querer incomodar o ditador indonésio Suharto, um velho amigo de Washington. Com medo do efeito dominó que espalharia o comunismo, a Casa Branca dera “luz verde” à invasão de Timor pelas tropas indonésias em 1975 e vendia armas a Jacarta.

Mas logo a 12 de Fevereiro de 1997, acabado de chegar ao 38.º andar da sede da ONU, Annan disse que iria ter uma atitude “mais proactiva” em relação a Timor. Não se limitando às palavras, nomeou o embaixador Jamsheed Marker como seu Representante Pessoal para Timor-Leste, um título que, podendo parecer burocrático, nunca existira. Portugal olhou para a nomeação com reserva. Até então, os encontros anuais com a Indonésia tinham resultado em absolutamente zero. Além disso, Marker fazia parte do círculo íntimo de Ali Alatas, o ministro dos Negócios Estrangeiros de Suharto.

Quando Annan propôs retomar o diálogo sobre “a questão de Timor” neste novo formato tripartido, e estando o dossier adormecido há 22 anos, Portugal concordou, mas não sabia bem ao que ia. A ex-diplomata e hoje eurodeputada Ana Gomes já disse que, até ao massacre no cemitério de Santa Cruz, em Díli, em 1991, 80% dos diplomatas portugueses não acreditavam na possibilidade de Timor-Leste algum dia tornar-se independente. No máximo — escreveu o embaixador Fernando Neves, negociador por Portugal nas rondas diplomáticas tripartidas iniciadas por Annan —, os aliados de Portugal acreditavam que se podia conseguir um reconhecimento da “especificidade cultural de Timor” e uma concessão de algum grau de autonomia dentro da Indonésia. Nunca a independência.

Sabemos como a história acabou. A 5 de Maio de 1999, dois anos depois do novo modelo negocial proposto por Annan, chegou-se a um acordo. A Indonésia aceitou fazer uma “consulta popular” — “referendo” era uma palavra tabu — e em 2002 Timor-Leste renasceu como país independente. Não há uma fórmula exacta para dizer o que mais pesou. Se foi a crise financeira na Indonésia; o efeito da fotografia em que Suharto foi visto como humilhado pelo FMI ao assinar o acordo de ajuda; se foi a sua queda; a impaciência de Habibie, o seu sucessor; ou a persistência da diplomacia e dos vários governos portugueses, de esquerda e de direita, que ao longo de 20 anos não desistiram e resistiram a todas as pressões, incluindo as dos próprios aliados.

A “feitiçaria africana” de Kofi Annan faz com certeza parte da equação. Nas suas memórias, o embaixador Marker atribui ao antigo secretário-geral uma boa parte do sucesso desta história. Fala do “método de Kofi Annan” e descreve-o em seis pontos: “Ter iniciativas ousadas e criativas; ser discreto; delegar ao máximo; não fazer micro gestão; assumir todas as responsabilidades em todos os momentos; e agir com determinação sempre que as circunstâncias o exigem.”

Há uma fotografia que parece ter captado a essência do estilo de Annan — mas também dos seus “cúmplices” nas derradeiras negociações sobre Timor-Leste. Foi tirada a 5 de Maio de 1999 na sala das conferências de imprensa da sede da ONU. Annan tem Alatas à esquerda e Gama à direita. Acabam de anunciar o acordo para o referendo em Timor. Cada um parece uma caricatura de si próprio. Alatas está descontraído, encostado às costas da cadeira e inclinado para o lado, como se estivesse a falar com alguém fora da mesa, e parece ter acabado de dar uma gargalhada tão forte que o obrigou a fechar os olhos. Annan está inclinado para os jornalistas, muito esticado, solícito e atento, com as mãos abertas e os dez dedos a tocarem-se aos pares, um gesto que dá ares de yoga e que fazia muitas vezes. E Gama está de cara e mãos fechadas, com os dedos cruzados a formarem um ovo. É o único que não tem papéis à frente. Dizer pouco e sem papéis foi uma das suas marcas no processo negocial de 1997-99. O seu rosto inexpressivo, quase triste, reforçava o impacto do seu discurso espartano.

Sempre que olho para esta fotografia fico a pensar se o autor — Peter Morgan, da agência Reuters — a escolheu porque, conhecendo os três diplomatas, sentiu que os mostrava com justiça. Ou se a selecção teve a ver com a “variedade” de estilos humanos que a imagem revela, o que a torna enigmática e plasticamente mais interessante. É possível imaginar — nunca lhe perguntei — que Gama não esteja a rir por saber que a paz vai demorar a chegar a Timor-Leste. A chave estará algures entre a sua natureza e a sua angústia.

No início, em 1997, talvez nem o próprio Kofi Annan acreditasse na independência de Timor-Leste. Agora que passaram 20 anos sobre o acordo de 1999, esta imagem parece a celebração de uma coisa ainda maior. E que inclui com certeza a força da diplomacia.

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