Mudança de funções na Altice gera dúvidas entre trabalhadores

Novo acordo expressa a possibilidade – já prevista na lei – de a empresa alterar temporariamente as funções do trabalhador. Mas entre os sindicatos quem considere que este ponto exigido pela empresa pode prejudicar os funcionários.

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Alexandre Fonseca lidera a Altice em Portugal. daniel rocha

O novo acordo de empresa da Altice Portugal trouxe, entre outros benefícios, aumentos salariais de dez a 25 euros – consoante os escalões salariais – a cerca de nove mil trabalhadores, mas também introduziu uma novidade que dividiu sindicatos e está a causar mal-estar entre alguns dos trabalhadores. Em causa está a inclusão de um novo ponto na cláusula sobre mobilidade funcional que motivou resistência por parte de alguns sindicatos, mas de que a empresa recusou abdicar ao longo do processo negocial.

No entendimento do Sindicato Nacional dos Trabalhadores dos Correios e Telecomunicações (SNTCT), um dos 14 que assinaram o novo acordo de empresa, este novo ponto no acordo colectivo de trabalho (ACT) abre a porta a que a Altice possa atribuir temporariamente outro tipo de funções aos trabalhadores por mais que os dois anos previstos no Código do Trabalho como duração máxima para estas situações.

“Os nossos advogados dizem que a introdução deste ponto é perigosa e que a empresa pode, a seu bel-prazer, decidir o prazo em que o trabalhador fica noutra situação, que pode ir além dos dois anos”, disse ao PÚBLICO o dirigente do SNTCT, Vítor Narciso. O sindicalista explicou ainda que depois de auscultados os associados sobre a assinatura do acordo, a questão dos aumentos salariais “pesou mais nos pratos da balança” do que eventuais implicações da mobilidade funcional, pelo que o SNTCT acabou por subscrevê-lo.

Já para o STPT (sindicato que mantém a sigla, mas que deixou de ser o sindicato dos trabalhadores da PT, para passar a ser o sindicato dos trabalhadores do grupo Altice em Portugal), o novo ponto incluído no ACT “não é nem mais, nem menos do que o que está na lei”. A possibilidade de a mudança de funções “ir para além dos dois anos, só pode acontecer com o acordo do trabalhador”, afirmou ao PÚBLICO o presidente do sindicato, Jorge Félix.

Questionada pelo PÚBLICO sobre a inclusão deste ponto no ACT e sobre se a empresa considera que o período máximo de dois anos previsto na lei continua a ser válido, a Altice Portugal optou por recordar que o novo ACT “foi celebrado com 100% dos sindicatos e que estes deram o seu acordo ao ACT na sua versão final, na íntegra”. A matéria relacionada com a mobilidade laboral foi “objecto de um processo negocial transparente entre a Altice Portugal e todas as associações sindicais representativas”. A empresa sublinhou ainda que “a maior aposta em vertentes mais específicas da área tecnológica e de inovação, bem como um mercado mais exigente requerem uma maior flexibilidade e polivalência de actuação interna da companhia”. O processo negocial abrangeu “variadas matérias” que a empresa e os sindicatos “entenderam pertinente regular, de comum acordo”, para dar resposta às “necessidades dos colaboradores e da organização”, acrescentou a Altice.

Diz a lei que todo o trabalhador deve, em princípio, exercer as funções para as quais foi contratado pelo seu empregador, porém, o Código do Trabalho também prevê, no seu artigo 120º, que a empresa possa atribuir-lhe temporariamente outras tarefas se considerar que isso serve melhor os interesses da organização. O novo ponto que passou a fazer parte do ACT da PT refere que “a entidade empregadora pode, fundamentadamente e quando o interesse da empresa o exija, atribuir temporariamente ao trabalhador funções não compreendidas na actividade contratada, desde que tal não implique modificação substancial da posição do trabalhador”. Nesta formulação proposta pela administração da Altice Portugal, e que se aproxima da redacção do Código do Trabalho, estão os princípios que a lei prevê para estas situações: a ordem de alteração de funções tem de ser justificada pela empresa, tem de ter um carácter temporário e não pode alterar o estatuto profissional do trabalhador, impedindo, por exemplo, que lhe sejam atribuídas funções que possam ser consideradas humilhantes, tendo em conta a sua posição, e que lhe seja reduzida a retribuição.

Mas o Código do Trabalho refere ainda que a ordem de alteração de funções pela empresa, além de ser justificada, deve “indicar a duração previsível da mesma, que não deve ultrapassar os dois anos”. Ora, sobre prazos nada é mencionado no ACT. Uma vez que não há referência a prazos, e que o Código do Trabalho também reconhece que o Artigo 120.º pode ser afastado por instrumento de regulamentação colectiva de trabalho, o SNTCT considera que a questão não é suficiente clara e pode vir a lesar os trabalhadores. Numa declaração que acompanhou a assinatura do acordo de empresa, o sindicato lamenta que não tenha sido “possível construir uma posição consensual que permitisse afastar” do compromisso “a mobilidade funcional – matéria que poderá vir a prejudicar os trabalhadores e a beneficiar a Altice na estratégia empresarial”.

Dois especialistas contactados pelo PÚBLICO consideram que neste tema da mobilidade funcional à partida vale a duração máxima prevista no Código do Trabalho. O novo ponto do ACT da Altice Portugal “transcreve o n.º1 do Artigo 120.º e reconhece que a alteração é temporária, pelo que o prazo [dos dois anos] mantém-se”, disse ao PÚBLICO o advogado especialista em direito do trabalho Fausto Leite. O facto de se omitir o prazo significa que se “aplica integralmente os dois anos” previstos no Código do Trabalho, acrescentou.

Outro especialista em direito laboral, Diogo Leote Nobre, sócio da sociedade Miranda Advogados, tem idêntica leitura. Frisando não se querer pronunciar sobre casos concretos, nem conhecer o acordo de empresa da PT Portugal ou o enquadramento em que foi negociado, o advogado disse ao PÚBLICO que, embora o Código do Trabalho preveja que o Artigo 120.º pode ser afastado por este instrumento de contratação colectiva, “à partida, nas matérias em que nada diz, aplica-se o Código do Trabalho, porque não está afastado expressamente”. Quando não há referências a prazos, o Código do Trabalho “não está afastado nem para mais, nem para menos” e a empresa “nunca pode escapar ao carácter transitório” da alteração.

Mas Diogo Leote Nobre também notou que, caso o trabalhador considere que sai prejudicado e que a ordem da empresa é ilegal, terá de ser ele a fazer prova disso nos tribunais, sem deixar, no entanto, de acatar a ordem de serviço. “O ónus fica sobre o trabalhador, que tem de provar judicialmente” a ilegalidade. Porém, se não cumprir a ordem, “arrisca-se a processo disciplinar por incumprimento de dever de obediência”, disse o especialista ao PÚBLICO.

Certo é que ao longo do processo negocial com os sindicatos, perante as dúvidas que foram levantadas sobre o tema, os representantes da empresa deixaram claro que não abdicariam deste ponto considerado fundamental para “garantir empregabilidade”. Aliás, rejeitá-lo implicaria alterar tudo o que estava a ser negociado ao nível de aumentos salariais, como demonstram as actas das reuniões de negociação do ACT consultadas pelo PÚBLICO.

Em defesa desta alteração, e como se lê na acta da reunião de 4 de Junho, a Altice “salientou que apenas se trata de uma questão respeitante aos limites temporais para o exercício de outra actividade, nada mais”. “A empresa necessita de requalificar o seu quadro de pessoal e enquadrá-lo em novas áreas onde haja necessidade”, lê-se no mesmo documento. Nesta acta, a própria frente dos sindicatos mais representativos reconheceu que esta questão da actividade profissional não era consensual entre as diferentes estruturas e que era “difícil dizer-se aos trabalhadores que podem ser colocados em funções diferentes daquelas para as quais foram contratados por mais tempo do que os dois anos da lei”.

A imposição de outro tipo de funções aos trabalhadores, a sua transferência para unidades onde ficam sem funções atribuídas (uma prática que já vinha da gestão de Zeinal Bava) ou a transferência de grupos de trabalhadores para outras empresas através do regime da transmissão de estabelecimento (que motivou inclusive uma alteração legislativa), foram algumas das medidas polémicas que marcaram a entrada da Altice na PT Portugal-Meo.

Agora, a empresa quis formalizar com os sindicatos o que entende ser “uma ferramenta essencial para o futuro”, como referem as actas. Existe por parte da empresa “o compromisso e vontade de proceder de outra forma”, disse o presidente do STPT ao PÚBLICO. Mas “ainda há muitas feridas”, porque “ainda há pessoas sem funções, pessoas desqualificadas e outras que perderam remunerações”. Sobre a mobilidade funcional Jorge Félix considerou “inevitável” que num sector como o das telecomunicações o “permanente progresso tecnológico torne obsoletas algumas funções” e que, “havendo o compromisso da administração de não fazer despedimentos”, os trabalhadores “tenham de ser enquadrados em novas funções”.

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