O amigo português de Marine Le Pen

Como a tarde está de Sol, deixo-lhe, meu caro João Miguel, um verso de Gertrude Stein: “Uma rosa é uma rosa é uma rosa é uma rosa”. Apesar dos seus textos, “Um racista é um racista é um racista é um racista”. Ou não?

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LUSA/THIBAULT VANDERMERSCH

Estamos em agosto, estou em férias e a minha filhota dorme sestas de três horas. Conjuntura ideal, por isso, para dialogar com (mais) um truculento texto do meu homónimo João Miguel Tavares. O colunista, é sabido, tem o verbo fácil e dispara bem a pistola semiótica. Tiro-lhe o chapéu aos títulos magníficos que tantas leituras lhe devem valer e à desenvoltura com que mistura o diletantismo mundano com o disparate bárbaro.

Desta feita, insiste numa das pérolas da “direita liberal” de que é no momento o mais histriónico epígono (o Observador não estará a precisar dos seus serviços?): a redução do mundo à simetria perfeita entre “liberais” (tolerantes) e “iliberais” (intolerantes, onde se mistura, de uma assentada, Marine Le Pen, Boaventura de Sousa Santos e o PCP). É claro que, com esse cliché, faz um servicinho jeitoso à senhora Le Pen: já não é uma fascista, racista ou nazi. Como o próprio diz, com candura, ela não o admite. Pois se é ela quem o diz… É como Trump. Não é racista. Nem machista. Alguma vez ele disse que o era? Sigamos o cherne! Os textos de João Miguel Tavares lavam mais branco. Mete-se lá um racista imundo e sai um nacionalista a cheirar a sabonete.

Aliás, Le Pen subscreveria a delicadeza de João Miguel. Não foi ela quem, em 2012, dirigindo-se a um jornalista, se afirmou “extremamente tolerante e hospitaleira”, embora questionando-o, caso ele recebesse um grupo de clandestinos em casa, “se aceitaria que eles mudassem o papel de parede, roubassem a carteira ou brutalizassem a sua esposa”… Ou quando, ainda nas últimas eleições, vituperou: “De cada vez que tipos gritam «Viva Mélenchon  [candidato presidencial de esquerda]» são franceses de origem magrebina!”. Não faltam exemplos…

Não se trata, pois, de mandar calar a Senhora Le Pen ou de dizer que não tem o direito de se candidatar a eleições livres e justas. A questão é outra: devemos ou não exigir do nosso governo que eventos organizados com dinheiro público promovam os discursos e as práticas de ódio? Nos compromissos editoriais do Público, que nem sequer tem dinheiros públicos, por exemplo, diz-se com clareza que neste jornal não haverá espaço para as opiniões que promovam o racismo, a xenofobia, a homofobia ou a apologia da violência. Na verdade, é um debate sobre a qualidade da esfera pública e sobre o papel da intermediação cultural o que está em causa.

Triste sina a de João Miguel Tavares, passar as suas tardes a desancar no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra como alforge de extrema-esquerda totalitária, uma espécie de guerrilha urbana dos tempos modernos, tal como Marine le Pen afirma que a França se tornou “uma Universidade de jihadistas”.

Como a tarde está de Sol, deixo-lhe, meu caro João Miguel, um verso de Gertrude Stein: “Uma rosa é uma rosa é uma rosa é uma rosa”. Apesar dos seus textos, “Um racista é um racista é um racista é um racista”. Ou não?

Sociólogo, Professor da Universidade do Porto, militante do Bloco de Esquerda

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