Rei arrisca regresso às Ramblas entre protestos e boicotes à monarquia

Vítimas e políticos defendem uma “trégua” no primeiro aniversário do atentado das Ramblas. “Não usem a dor alheia para fazer política”, pedem. Será difícil: antecipam-se protesto a favor e contra a presença de Felipe VI.

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Esta sexta-feira devia ser um dia de “homenagem às vítimas”, “às forças de segurança e aos voluntários”, um elogio “aos catalães” que no dia seguinte já gritavam: “Não tenho medo”. Passou um ano desde os atentados das Ramblas. Mas a ensombrar as cerimónias vai estar tudo o que aconteceu entretanto, do referendo ilegal sobre a soberania à suspensão da autonomia imposta por Madrid. A maior crise política da Espanha democrática.

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Esta sexta-feira devia ser um dia de “homenagem às vítimas”, “às forças de segurança e aos voluntários”, um elogio “aos catalães” que no dia seguinte já gritavam: “Não tenho medo”. Passou um ano desde os atentados das Ramblas. Mas a ensombrar as cerimónias vai estar tudo o que aconteceu entretanto, do referendo ilegal sobre a soberania à suspensão da autonomia imposta por Madrid. A maior crise política da Espanha democrática.

A CUP (o partido anticapitalista mais à esquerda entre os independentistas) é a única a boicotar oficialmente as cerimónias preparadas pela câmara de Barcelona – e para as quais a autarca Ada Colau não convidou políticos, sabendo naturalmente que eles iriam. O motivo da CUP é a presença do rei Felipe VI, que desde Outubro do ano passado viu a sua presença banida em diferentes cerimónias na Catalunha e foi considerado persona non grata por várias autarquias.

O próprio presidente da Generalitat, Quim Torra, escolhido pela maioria do Parlamento eleito a 21 de Dezembro (nas autonómicas marcadas pelo ex-primeiro-ministro, Mariano Rajoy, no âmbito da aplicação do artigo 155), fez saber que não voltará a convidar o rei para nada nem estará em actos convocados pela coroa.

“Não usem a dor alheia para fazer política”, pediram as associações de apoio às vítimas (feridos e familiares dos 16 mortos, ou pessoas traumatizadas por terem sido testemunhas dos ataques) e o conselheiro (equivalente a ministro) da Generalitat para o Interior, Miquel Buch.

Torra chegou ao poder em Maio, depois de meses de polémicas, com os independentistas a tentarem nomear para o cargo o próprio Carles Puigdemont, um dos poucos membros do anterior governo que não está na prisão por ter abandonada a Catalunha em direcção a Bruxelas. Entretanto, tanto a justiça belga como a alemã recusaram extraditá-lo por “rebelião e sedição”, crimes de que são acusados os ex-membros da Generalitat, os ex-presidentes das principais associações independentistas e o anterior chefe dos Mossos d’Esquadra, a polícia catalã, major Josep Lluís Trapero.

“O rei deve estar. E o Governo, que insiste no erro de que há normalidade, deve garantir que o chefe de Estado possa estar presente em qualquer lugar de Espanha”, defende Inés Arrimadas, a líder do Cidadãos na Catalunha (onde o partido nasceu precisamente para combater o soberanismo) e a mais votada em Dezembro, quando os independentistas renovaram a maioria.

“Porque é que o rei tem de estar em Barcelona no dia 17? Oferece-se assim outra oportunidade ao independentismo de exibir a sua força frente a umas autoridades de Estado que têm as suas capacidades muito diminuídas na Catalunha”, defende, por seu turno, Tom Burns Marañón, ensaísta hispano-britânico ouvido pelo El País. “Todo o mundo vai ver isso, o que prejudica o prestígio da coroa”, lamenta este especialista em realeza.

O artigo 155, as detenções, com acusações de crimes que podem valer 30 anos de cadeia a políticos escolhidos nas urnas, deixaram muitos catalães zangados. Mas a zanga que já existia – da parte dos que defendem a independência ou o direito a decidir o futuro da região em referendo, ao mesmo tempo que o então chefe de Governo, o conservador Mariano Rajoy, recusava negociar fosse o que fosse – começou a piorar poucas semanas depois dos atentados.

Aplausos e apupos

No dia seguinte, o monarca encabeçou a concentração que fez transbordar a Praça da Catalunha (ao cimo nas Ramblas, será um dos cenários centrais das homenagens). “Não tenho medo”, foi o grito partilhado num dia de Agosto em que os políticos e, principalmente o rei, foram aplaudidos. Talvez por isso, o rei quis estar presente na manifestação antiterrorismo marcada para o dia 26, “um equívoco”, diz Burns Marañón.

Desta vez, havia cartazes, bandeiras, faixas, reivindicações. E nenhum rei alguma vez se pôs atrás de um cartaz. A união pós-atentado já desaparecera, à medida que se aproximava a Diada, a 11 de Setembro, transformada há anos numa festa independentista, organizada pela Associação Nacional Catalã (ANC) e pela Òmnium Cultural. Desta vez, a parada era bem mais alta: aproximava-se o dia escolhido pela Generalitat para referendar a soberania (uma consulta que a Justiça viria a declarar ilegal), 1 de Outubro. E foi assim que Felipe VI se viu numa situação inédita, apupado por filas bem organizadas de independentistas.

O pior estava para vir. O referendo realizou-se contra as ordens da Justiça e de Madrid, depois da Guardia Civil e da Polícia Nacional terem detido dezenas de funcionários da Generalitat. Muitas pessoas organizaram-se para ocupar as escolas e impedir que as agentes as encerrassem no domingo do voto. Rajoy garantiu que não se votaria, mas votou-se entre cargas policiais e ataques informáticos aos sites onde os cadernos eleitorais eram consultados.

As imagens de violência foram a última gota para os independentistas – isso e o facto de Rajoy não se referir a elas no seu discurso da noite de 1 de Outubro, elogiando a actuação policial.

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A polícia nacional tentou impedir a realização da consulta de 1 de Outubro Alberto Estevez/EPA

O discurso de 3 de Outubro

A 3 de Outubro, coube a Felipe VI fazer a sua primeira declaração aos espanhóis (raras para qualquer monarca) e a intervenção mais difícil do seu curto reinado. Sem se referir às centenas de feridos, acusou a Generalitat de “deslealdade inadmissível face às autoridades do Estado”, prometendo que manteria a todo o custo “o firme compromisso da coroa com a democracia, a unidade a continuidade de Espanha”.

Os catalães que votaram ou tentaram votar (quase 3 milhões) não lhe perdoaram a dureza e ouviram nas suas palavras um apoio à intervenção de Madrid na autonomia catalã, que viria a acontecer no fim desse mês.

Apesar das conversas entre Torra e o novo primeiro-ministro, o socialista Pedro Sánchez, que levaram o primeiro a admitir como “razoável” adiar a República se Madrid propusesse a realização de um referendo, o braço-de-ferro continua entre soberanistas e partidos pró-Espanha. No parlamento, independentistas aprovam leis que os partidos anti-independência consideram ilegais; o Cidadãos não pára de exigir o regresso do artigo 155 (levantado com a tomada de posse da nova Generalitat) e Torra já reinstituiu 90 dos altos funcionários afastados por Madrid.

Manifestação pró-monarca

Para esta sexta-feira à tarde, horas depois das cerimónias oficiais, está marcada uma manifestação diante da prisão onde se encontra o ex-conselheiro do Interior, Joaquim Forn, que com Trapero coordenou os esforços que permitiram desmantelar a célula terrorista que atacou a cidade em cinco dias.

E claro, está em marcha a próxima Diada: o antigo líder da ANC, actual deputado, na prisão desde 16 de Outubro, Jordi Sànchez, já pediu “uma mobilização histórica” a “caminho da liberdade da república”.

Não foram anunciados protestos contra a presença de Felipe VI. Mas esperando acções dos Comités de Defesa da República (CDR, grupos de cidadãos que têm encerrado estradas ou organizado manifestações de apoio aos presos), uma associação chamada União Democrática de Espanha decidiu convocou uma concentração de apoio ao monarca. Depois deste anúncio é mais provável que os CDR protestem. E no fim do dia, talvez Felipe VI se interrogue se fez bem ou não em ir às Ramblas.