Para o monstro sagrado dos genéricos, o cliente tem sempre razão

Bastaram três minutos para revelar Kyle Cooper: os três minutos do genérico de Seven de David Fincher. Hoje, o designer americano é considerado um dos mestres da forma, a par de gente como Saul Bass. Em Locarno, recebeu um prémio de carreira mas continua a ver-se como um simples executante de ideias ao serviço do filme

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Samuel Golay

“Eu sou só um fornecedor”, ri-se Kyle Cooper quando o seu estatuto exaltado de génio dos genéricos é trazido ao de cima. “Sou só um designer gráfico, um fornecedor, que tem um cliente, e o cliente tem de gostar do que estou a fazer.” A modéstia pode ficar-lhe bem, mas não é a modéstia que põe Cooper a receber o prémio de carreira VisionAward atribuído pelo festival de Locarno – prémio entregue em anos anteriores a Douglas Trumbull, o autor dos efeitos visuais de 2001 e Blade Runner, Garrett Brown, o inventor da câmara steadycam, ou Walter Murch, o montador de som de Francis Coppola.

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Em Locarno, onde recebeu um prémio carreira, Cooper deu uma master class sobre a arte dos “opening credits” Pier Marco Tacca/Getty Images

O que é, então, que traz este homem modesto e discreto, cujo nome apenas será reconhecido por alguns a Locarno, para dar uma master class, mostrar alguns dos filmes cujos genéricos que assinou e receber um galardão de honra – e falar com jornalistas de todo o mundo num luxuoso hotel da vila suíça? Para isso é preciso recuarmos quase um quarto de século atrás e alinharmos o filme que colocou David Fincher no mapa, Seven – Sete Pecados Mortais (1995). Quem viu esse hoje clássico nunca mais esqueceu o genérico – dedos, agulhas, lâminas de barbear, folhas e folhas de escrita miudinha e picuinhas, lettering manual, recortes e a música dos Nine Inch Nails.

Foi o ponto zero do renascimento do genérico – a sequência inaugural com os créditos de um filme, erguida a forma de arte nos anos 1950 por Saul Bass (1920-1996) com filmes como O Homem do Braço de Ouro?, Vertigo – A Mulher Que Viveu Duas VezesPsico ou Intriga Internacional, mas que, depois dos trabalhos de Maurice Binder para os filmes de 007 ou das animações de Friz Freleng e David de Patie para os filmes da Pantera Cor-de-Rosa durante os anos 1970, pela década de 1990 tinha voltado a ser apenas algo de puramente utilitário.

O genérico de Seven fora concebido por Kyle Cooper, então a trabalhar na R/Greenberg Associates, uma das principais firmas de genéricos e efeitos ópticos de Hollywood. Treinado como designer gráfico em Yale com o lendário modernista Paul Rand como mentor, Cooper trabalhava na firma de computadores Wang quando viu uma bobina de genéricos trazida por um colega, em que estavam três que lhe chamaram particularmente a atenção – “minimalistas, muito simples, mas impecáveis”: Alien – O Oitavo Passageiro de Ridley Scott, Viagens Alucinantes de Ken Russell e Zona de Perigo de David Cronenberg. Todos tinham sido produzidos pela R/GA, onde Cooper (n. 1962) acabaria por começar a trabalhar em 1989, ajudando a criar genéricos para Sozinho em Casa, Perseguido pelo Passado, Proposta Indecente, Quiz Show, A Verdade da Mentira ou Braveheart.

Depois de Seven, Cooper e os seus colegas pegaram no escritório de Los Angeles da R/GA e autonomizaram-no sob o nome Imaginary Forces, “marca” que se tornou a referência moderna do genérico – a arte de “dar o tom” a um filme desde a primeira sequência, de sintetizar o ambiente de um filme desde o primeiro fotograma. O primeiro Missão: Impossível, Tornado, Donnie  Brasco, A Máscara de Zorro, Esfera, O Suspeito da Rua Arlington, A Múmia, Homem-Aranha, O Renascer dos Mortos vieram todos dar um novo alento a uma forma com tanto de arte como de marketing. “Um genérico pode ser o início perfeito de um filme”, diz Cooper a uma mesa-redonda com jornalistas em Locarno na qual o PÚBLICO esteve presente. “Queremos dar o tom emocional do filme, gerar uma resposta do público, explicar coisas ou expor elementos narrativos, fazer o espectador sentir que não quer estar em nenhum outro sítio do mundo naquele momento. Não resulta sempre. Não é uma ciência exacta. E não é fácil. Mas é uma oportunidade.”

“Lembras-te das coisas do Saul Bass?”

Cooper vai buscar o exemplo do “mestre” da forma, Saul Bass, confrontando-o com a sua própria experiência em início de carreira. “Quando ele fez o genérico de O Homem do Braço de Ouro [1955], as pessoas tinham-se deixado encostar à bananeira, e ele reconheceu que havia ali uma oportunidade, um terreno onde era possível fazer algo criativamente interessante. E daí surgiu muito bom trabalho. Lembro-me, nos meus primeiros tempos na R/GA, de trabalhar com o Martin Scorsese em Tudo Bons Rapazes, e eu não estava a chegar ao que ele pretendia. Ele disse: ‘Lembras-te das coisas do Saul Bass?’ E respondi-lhe que ele ainda estava no activo. E ele foi falar com o Saul Bass, que acabou por fazer o genérico. Eu estava a tentar arranjar uma metáfora; Bass olhou para o início que o Scorsese tinha montado, com o Ray Liotta a abrir a mala, e pensou: ‘Eles estão num carro, então vamos pôr  a ficha técnica a entrar como se fossem carros de passagem.’ Saul Bass resolveu o problema que eu não tinha conseguido resolver, e eu aprendi uma lição.”

Os genéricos de Cooper também vieram a contracorrente. “O Saul Bass falava de modas – às tantas os estúdios cansaram-se de genéricos elaborados e passaram a fazer só genéricos à Woody Allen, lettering branco sobre fundo negro, sem gastar muito dinheiro. Mas esquecem-se que é o princípio do filme.” Voltamos à questão da modéstia: o designer não quer puxar a brasa à sua sardinha. “Parece um bocado arrogante ser eu a dizer que foi o Seven que relançou o genérico, mas já que foi você que o disse...” Risos.

“Sim, acordou um pouco as pessoas para as potencialidades da abertura de um filme. O último grupo de jornalistas que aqui esteve perguntou-me o que eu achava do botão da Netflix que permite saltar o genérico. Acho que em alguns casos é quase um crime fazer isso. Mas tenho de fazer uma distinção entre um genérico para cinema e um genérico para televisão. Num filme, o genérico está a preparar o terreno para um filme específico num contexto determinado, mas numa série televisiva o genérico não é específico para cada episódio, e, se quero ver os episódios de seguida, não preciso de estar sempre a ver o mesmo genérico.” Mas, por outro lado… “Quando eu era mais novo e eu e os meus irmãos nos sentávamos a ver uma série como Wild  Wild  West, não podíamos saltar o genérico, ia tudo para o ar em directo. E o genérico era parte do ritual de nos sentarmos a ver uma série.”

Já que estamos a falar de televisão, Cooper não poupa elogios ao facto de o “renascimento” da arte do genérico se ter alargado também às séries televisivas – ele lá sabe, pois assinou com a Prologue (o estúdio criativo que formou em 2003 depois de sair da Imaginary Forces) as aberturas de The Walking Dead, American Horror Story, American Crime StoryFeud ou do recente remake para a HBO de Fahrenheit 451. “O Ryan Murphy, por exemplo, disponibiliza os genéricos de American Horror Story antes sequer de a série ir para o ar como um modo de anunciar, para fazer falar da série. As pessoas falam do genérico e criticam-no, independentemente do filme, e acho saudável esse tipo de interesse, mas não me parece que se devam separar… É no início do filme ou da série que eles realmente funcionam melhor. Não foram pensados como uma espécie de teledisco isolado.”

Essa atenção é o “outro lado”, o lado negativo, da popularidade da forma, e Cooper recorda dois casos em que a qualidade do genérico acabou por lhe criar problemas: “Há muito tempo, fiz o genérico de A Ilha do Dr. Moreau para o John Frankenheimer, e as pessoas disseram que não tinha nada que ver, parecia algo que tinha sido colado com cuspo e não estava ao serviço do filme. Senti-me muito mal nessa altura.” Contudo, em abono da verdade, essa adaptação de H. G. Wells teve sérios problemas de produção e é hoje mais recordada por ser um dos últimos papéis de Marlon Brando. “E o crítico Elvis Mitchell escreveu no New York Times que o meu genérico para O Renascer dos Mortos era melhor do que o filme. Um dos assistentes do [realizador] Zack Snyder deu-me a entender que foi por causa disso que ele nunca mais trabalhou comigo, mas eu nunca teria feito isso propositadamente.”

Os melhores e os piores clientes

Afinal, Cooper é “apenas” um fornecedor. “Não me incomoda trabalhar dentro de uma ‘caixinha’ muito pequena ou com parâmetros muito rígidos, nem que a ideia seja do realizador e eu esteja apenas a executá-la. O que eu quero é saber o que o filme é, qual é a intenção dos envolvidos e tentar executar a ideia de um modo que me pareça criativamente sofisticado e com o qual me identifique. Não estou aqui para dizer que eu é que sei e o realizador não tem voto na matéria. Sou um designer, tenho um cliente que tem de gostar do que estou a fazer. E os melhores clientes fazem comentários pertinentes e inteligentes.” Houve, certamente, experiências negativas... “Não me recordo de grandes discussões. Geralmente, quando estou em desacordo, faço a versão que me é pedida o melhor que posso e, nesse processo, torna-se visível porque é que não funciona.”

Ainda assim, Cooper aponta dois casos em que as coisas não correram tão bem, embora mantenha, como um cavalheiro, que não é nada de pessoal. “Quando fiz Donnie Brasco, usei música de Beethoven e fiz muita pressão para o Mike Newell, que é uma jóia de pessoa, usar essa versão, mas não ganhei a discussão e o que se vê hoje não é aquilo que eu tinha pensado. A mesma coisa aconteceu com o Guillermo del Toro, que eu admiro imenso, em Mimic – Predadores de Nova Iorque. Montei cada fotograma do genérico à pele da música que ele me tinha entregue, mas ele juntou uma cena de neve ao princípio, a música recuou um par de segundos e a montagem ficou fora de ritmo!”

Hoje, Cooper é um “monstro sagrado” da forma, alguém que contratou e ajudou a formar muitos grafistas da nova geração. “Muitas das pessoas que hoje fazem genéricos nunca teriam chegado ao cinema, se não as tivesse contratado. O Garson Yu, da yU+Co [A Vida de Pi, Silicon Valley, Watchmen], queria ser escultor e fui eu quem o convenceu a fazer genéricos. O Danny Yount, que trabalhou na Prologue, o Aaron Becker e o Seth Kleinberg da Filmograph [Foge, John Wick, The Conjuring]... a Michelle Dougherty, que contratei para a Imaginary Forces, ganhou o Emmy por Stranger Things quando eu fui nomeado por Feud. Eu podia ficar irritado por perder trabalho para eles ou por eles terem ganho em vez de mim, mas não fico triste, fico contente.”

Volta a modéstia. “Tenho orgulho no trabalho deles, e isso não quer dizer que não tenha trabalho. Não posso fazer tudo. E neste momento a verdade é que as minhas escolhas têm mais que ver com as pessoas que querem voltar a trabalhar comigo e com quem gosto de trabalhar.” Cita nomes: Scott Cooper (Jogo Sujo, Hostis), Ryan Murphy (American Horror Story, Feud), Ben Stiller (A Vida Secreta de Walter Mitty), Gareth Edwards (Godzilla), Ridley Scott (Exodus, Prometheus), Julie Taymor (Across the Universe, A Tempestade), Terrence Malick... “Em vez de andar a candidatar-me a novos clientes, prefiro trabalhar com gente que me conhece, que sabe o que faço e que sabe o que posso trazer ao trabalho. Não há ninguém com quem queira trabalhar desesperadamente.”