Entre a política e a justiça, o arraial regressa ao Monte

Um ano depois da queda de uma árvore ter provocado 13 mortos e perto de 50 feridos, o arraial à Nossa Senhora do Monte, padroeira da Madeira, vai cumprir a tradição. Mas com cautelas.

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Foi há um ano que a queda de um carvalho de grande porte provocou a morte a 13 pessoas na principal festa religiosa da ilha HOMEM DE GOUVEIA/LUSA

Este ano, a música tocará baixinho e o rebentamento de fogo de artifício mal se fará ouvir. O arraial à Nossa Senhora do Monte, onde em 2017 a queda de um carvalho de grande porte provocou a morte a 13 pessoas e ferimentos a meia centena, esteve este ano para não se realizar.

Foi só a meio de Julho que a autarquia do Funchal, após uma “avaliação exaustiva” aos jardins que circundam o Largo da Fonte, onde se concentra a animação do arraial, viabilizou a realização daquela que é a principal festa religiosa da ilha.

“O Largo da Fonte foi integralmente avaliado e intervencionado, e os técnicos especialistas envolvidos nesse trabalho concluíram que o espaço pode ser utilizado sem qualquer tipo de restrição”, adianta ao PÚBLICO o gabinete do presidente da Câmara Municipal do Funchal, Paulo Cafôfo, precisando que foram abatidas seis árvores, para além da redução e remoção de vários ramos.

Explicações que não convencem totalmente parte da população, nem a Junta de Freguesia do Monte. Idalina Silva, a presidente da junta eleita pelo PSD, queria mais. Durante as audições parlamentares que decorreram no final de Julho na assembleia madeirense a autarca defendeu uma intervenção mais profunda, através do abate de mais duas árvores que, argumentou, teriam um “efeito psicológico” positivo nas pessoas.

Especialistas ouvidos pelos deputados da Comissão da Saúde e Assuntos Sociais, como o ex-director regional de Florestas, Rocha da Silva, ou o antigo vereador do Ambiente do Funchal, Raimundo Quintal, também deixaram algumas ressalvas sobre a intervenção realizada. Mas, a vontade de cumprir uma tradição que remonta aos primórdios da colonização da ilha sobrepôs-se a eventuais dúvidas.

A autarquia, seguindo as “recomendações” dos técnicos que estiveram a avaliar e a intervir na zona, colocou apenas restrições ao nível acústico. A animação musical não poderá por isso recorrer a amplificadores e o lançamento de fogo está circunscrito a locais autorizados. Tudo para reduzir as vibrações no local da festa, depois de alguns dos técnicos que estiveram no local após o incidente terem admitido que essas situações podem ter tido influência na queda da árvore.

O arraial da padroeira da Madeira, que começou no dia 5 de Agosto com a realização da primeira das nove novenas, as missas organizadas por sítios e instituições da freguesia, celebradas à razão de uma por dia e que antecedem a celebração da Assunção de Nossa Senhora do Monte, pode assim se realizar. Mas não sem polémica.

Com o município a ser liderado por uma coligação encabeçada por PS e Bloco de Esquerda, e a junta de freguesia nas mãos do PSD que governa o arquipélago, o caso que ocorreu há precisamente um ano – a árvore caiu no início da tarde do dia 15 de Agosto, quando os fieis aguardavam a passagem da processão – assumiu contornos políticos. A junta de freguesia acusou a autarquia de não informar a população sobre as medidas que estavam a ser tomadas no local do arraial, e de actuar nas costas dos eleitos locais.

A presidência do município diz que não. “A Câmara Municipal do Funchal tomou a iniciativa de articular a sua acção com todas as entidades envolvidas na organização das Festas, de forma a inteirar-se de todos os pormenores associados à sua organização. Por esse motivo, promoveu reuniões com a Paróquia do Monte, com a Junta de Freguesia do Monte e com a Comissão de Festas”, contrapõe o gabinete de Paulo Cafôfo, insistindo que a autarquia fez tudo para que o arraial decorra dentro da normalidade.

O diferendo entre autarquia e junta de freguesia começou no mesmo dia em que a árvore caiu, e até meteu a Diocese do Funchal pelo meio. Nos Paços do Concelho, rejeitou-se sempre responsabilidades pelo incidente e, embora reconhecendo que a manutenção do Parque Leite Monteiro (onde estava o carvalho) era feita por funcionários municipais, argumentam que o terreno em causa pertence à igreja madeirense. A junta de freguesia, divulgou ofícios enviados anteriormente dando conta dos riscos que representava aquela árvore, mas a câmara municipal respondeu que toda a correspondência recebida indicava outra árvore que não aquela que caiu.

Três arguidos

O caso seguiu também na justiça. A Procuradoria-Geral da República abriu um inquérito que continua em investigação. Para já, existem três arguidos. Paulo Cafôfo, a vereadora do Ambiente, Idalina Perestrelo, que à data era vice-presidente da autarquia, e o responsável pela divisão de Jardins e Espaços Verdes Urbanos do município, Francisco Andrade. “Estou de consciência tranquila”, reagiu Cafôfo quando foi tornado público que era arguido no caso, mostrando-se “disponível” para colaborar com a justiça.

O despacho de acusação ou arquivamento deverá ser conhecido em Setembro, e aguarda, explicou ao PÚBLICO fonte do Ministério Público, os relatórios médicos das vítimas não mortais. Este atraso, já passou um ano sobre a tragédia, é considerado normal e estará relacionado com a falta de meios do Instituto de Medicina Legal.

Este processo judicial extravasa o próprio interesse dos familiares das vítimas, e remete novamente para o campo político. Paulo Cafôfo é o candidato escolhido pelo PS para a presidência do governo madeirense, nas eleições regionais do próximo ano.

Em Agosto de 2010, no Porto Santo, a queda de uma palmeira atingiu fatalmente duas pessoas, que assistiam a um comício do PSD. O presidente da autarquia da altura, o social-democrata Roberto Silva e mais dois vereadores, acabaram por ser condenados a dois anos de pena suspensa pela prática dos crimes de homicídio por negligência e ofensa à integridade física por negligência. Os mesmos crimes de que o autarca do Funchal poderá ser acusado.

As vítimas mortais, uma criança de um ano e 12 adultos com idades compreendidas entre os 28 e os 59 anos, entre as quais duas mulheres estrangeiras (uma francesa e outra húngara) serão homenageadas nesta quarta-feira, durante a procissão que vai contar, como é tradição, com a presença das principais autoridades políticas da região autónoma. 

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