Cenário de penúria nos tribunais afecta de "forma grave o funcionamento" da Justiça

Faltam impressoras, canetas, papel. Não há elevadores, nuns casos, há pragas, noutros. E, por vezes, até a segurança de quem lá vai não está garantida, dizem presidentes dos tribunais nos relatórios que fizeram chegar ao Conselho Superior da Magistratura.

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Diogo Baptista

Há tribunais onde a falta de elevadores obriga os funcionários judiciais a carregar as pessoas com dificuldades de locomoção escada acima e escada abaixo. Onde a falta de papel e de tinta nas impressoras atrasa o serviço dias a fio. Onde o frio que se faz sentir no Inverno e o calor do pino do Verão tornam quase impossível trabalhar.

Os mais recentes relatórios dos juízes que dirigem os tribunais portugueses de primeira instância, entregues, como acontece todos os anos, no Conselho Superior da Magistratura, espelham a vida quotidiana nos tribunais — explicando, ao mesmo tempo, alguns motivos dos insondáveis atrasos da justiça.

Em Novembro passado, a ministra da Justiça disse, num encontro de juízes em Tavira, que a modernização tecnológica aumentava a independência dos tribunais. Só que muitos dos relatos dos magistrados que dirigem as 23 comarcas judiciais do país — uma por distrito — chocam de frente com este discurso. E nem é preciso ir para o interior do país à procura de situações extremas. A descrição dos problemas quotidianos durante o ano de 2017, feita pela presidente da comarca de Lisboa, Amélia Catarino, é clara: “O factor impeditivo de maior produtividade prende-se com a falta de material de economato, sendo particularmente grave a falta de stock de papel.” A magistrada queixa-se da reduzida qualidade dos lápis e canetas adquiridos pelas centrais de compras do Estado, revelando um caso caricato: foram fornecidas à comarca agendas em espanhol.

Mas há mais: o equipamento de digitalização e impressão “não é compatível com o volume de serviço”, enquanto “a constante falta de toner [tinta] das impressoras é agravada pelo processo de substituição, que demora quase uma semana, e pela sua constante avaria”.

Do lado da plataforma informática em que assenta o funcionamento da maior parte da justiça de primeira instância, o chamado Citius, o panorama não é melhor: “Continuam a registar-se constrangimentos limitadores da produtividade”, não apenas por o sistema se revelar demasiado lento como por apresentar deficiências várias. “Gera entropias e conduz a um grande desgaste físico e mental”, chegando a provocar, nalgumas situações, “erros frequentes”.

Carência de funcionários

O presidente da comarca do Porto, José Rodrigues da Cunha, também não se mostra satisfeito. “A insuficiência de meios, de instalações e de recursos humanos continua a afectar negativamente e de forma grave o funcionamento” dos tribunais do distrito, critica. À carência de juízes e de procuradores junta-se uma falta de oficiais de justiça “de tal modo dramática que dificilmente será possível recuperar das suas consequências a curto prazo”. O problema dos funcionários, é, de resto, transversal a praticamente todo o país: contam-se pelos dedos os tribunais que assumem ter pessoal suficiente.

Mas não é só mais pessoal que reclama a comarca do Porto. Os tribunais que a compõem debatem-se com a degradação das instalações e com exiguidade de espaço, nomeadamente para realizar megajulgamentos. E Rodrigues da Cunha até já tinha pensado em como resolver a questão: ocupando o antigo convento de Santa Clara, em Vila do Conde. Os planos saíram-lhe, porém, furados: “Inexplicavelmente, o convento foi cedido a privados para a sua exploração, sem que tivesse sido dada qualquer explicação aos órgãos de gestão da comarca, muito embora as suas instalações tenham sido formalmente solicitadas ao Ministério da Justiça.” O edifício irá ser usado para fins turísticos e não para fazer justiça.

Tal como em Lisboa, nem sempre os edifícios onde estão instalados os tribunais se revelam os melhores locais de trabalho. No Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia, “as infiltrações e humidades que se têm registado nos últimos anos constituem uma séria ameaça em termos de saúde para os magistrados e funcionários, bem como para os advogados e público em geral”.

“Cheiro nauseabundo”

A situação não é melhor em Vila Franca de Xira, onde, segundo o relatório do ano passado, se mostrava urgente substituir os contentores onde funcionavam as salas de audiências e outros serviços. Além de terem humidade e cheiro a mofo, “é necessário substituir a plataforma envolvente dos referidos contentores que se apresenta podre e infestada de pragas, e apresenta, por vezes, cheiro nauseabundo”. De resto, a infestação por pragas não é um exclusivo da zona dos contentores: também atacaram as antigas condutas de ar do Tribunal do Trabalho.

Em Vila Real as pombas que moram no telhado “lançam diariamente dejectos” para a entrada e para a escadaria do tribunal da sede da comarca. “Presume-se que exista muito lixo orgânico no telhado”, escreve o juiz-presidente.

O ar condicionado é um luxo que ainda não chegou a muitos dos tribunais desta e doutras comarcas, apesar dos insistentes pedidos dos seus dirigentes para verem substituídos os obsoletos sistemas de aquecimento que têm a uso. “É urgente resolver a situação, atentas as amplitudes térmicas que se fazem sentir na região, dos dez graus negativos aos 45 positivos”, avisa o juiz-presidente de Vila Real.

Premente é igualmente a instalação de um elevador para os idosos e outras pessoas com dificuldades de locomoção: em Alijó, Montalegre e Peso da Régua, “sempre que há necessidade de aquelas pessoas acederem aos serviços judiciais, recorre-se aos bombeiros ou, na maioria das vezes, aos funcionários do tribunal, que carregam a pessoa ao longo das escadas”.

Transversal às reclamações relacionadas com a logística é também a segurança: são escassos os pórticos para detecção de metais à entrada dos tribunais. No seu mais recente relatório, o presidente da Comarca de Faro mostra-se indignado: “Como não me canso de repetir, é necessário repensar, ao nível mais elevado dos decisores políticos, a questão da segurança dos edifícios (...). A segurança de quem trabalha num tribunal e de quem a ele recorre é função do Estado e não pode ser entendida como se de questão menor se tratasse.”

Não raras vezes, é a própria lei, nas suas múltiplas exigências, que está a ser violada em pleno tribunal. Em Torres Novas, no distrito de Santarém — onde, assegura o juiz-presidente, se chega a atingir no Verão os 40 graus na sala de audiências —, as celas do tribunal onde são mantidos os presos continuam a necessitar de obras para cumprirem os requisitos legais. E não é caso único. “Praticamente em todos os palácios da justiça que integram a comarca regista-se a premente necessidade de instalação de sistemas de segurança, intrusão e de detecção de incêndio”, refere o respectivo relatório.

O PÚBLICO contactou o Ministério da Justiça no sentido de obter explicação para as situações descritas pelos presidentes das comarcas, mas não obteve qualquer resposta.

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