Pouca terra e pouco juízo

O Estado não pode votar ao abandono um serviço público desta relevância, em particular no interior. Como diz Miguel Esteves Cardoso, "é pelos comboios que se julga o espírito de um país".

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Nelson Garrido

Nos anos 50 do século passado, o Foguete ia de Lisboa ao Porto em quatro horas. Na década de 80, o Intercidades percorria igual trajecto em três horas. De então para cá, enquanto o mundo conheceu um desenvolvimento tecnológico sem precedentes, o melhor que se conseguiu foi criar o serviço Alfa Pendular, que demora aproximadamente duas horas e 44 minutos entre as duas principais cidades do país. Em 30 anos, ganhámos só 16 minutos. Não porque não tenha havido dinheiro para obter algo mais, mas porque a política de vistas curtas ganhou sempre à estratégia e o populismo à razão.

Porém, se o principal problema do transporte ferroviário em Portugal residisse no facto de não se ter alcançado mais do que este tímido ganho de tempo, estaríamos todos bem. Há tantos e tão bons livros para ler e tantas séries de excelência para ver que até daríamos o tempo de viagem por bem empregue. Infelizmente, a qualidade do serviço prestado é tão baixa, que qualquer jornada de comboio se transforma num pesadelo. Os atrasos são constantes, sendo rara a viagem que demora menos de três horas, o que resulta numa perturbação da vida de quem tem horários a cumprir. Por coincidência, no dia em que escrevi esta crónica, uma avaria num comboio obrigou-me a mudar para outro e atrasou a chegada em uma hora. No interior do comboio, quase sempre velho e sujo, a tão propalada rede de Internet não é, em pleno século XXI em que há cidades inteiras com wifi, nada senão uma miragem. Por sorte, nunca tive de suportar temperaturas indescritíveis por falhas do sistema de climatização, mas, tendo em conta o estado vergonhosamente degradante das composições em circulação, não há-de faltar muito tempo para que isso se torne regra.

As razões para a progressiva deterioração do transporte ferroviário em Portugal são muitas e óbvias. A ideia de modernidade saloia que vigorou durante os anos 80 fez com que se inundasse o país de auto-estradas eternamente desertas e condenadas a uma inutilidade mais do que previsível. Foi-se acabando com linhas essenciais como as de Bragança e Viseu – é inacreditável que não haja comboios a chegar a todas as capitais de distrito – e deixando estações a apodrecer, de que é exemplo a de Mirandela. Se hoje tanto nos preocupa o abandono do interior, isso em muito se deve ao facto de os planos para o ligar ao resto do país terem caído no esquecimento. Depois, enquanto os países realmente desenvolvidos da Europa investiam na melhoria da sua rede ferroviária, por encararem a ferrovia como motor de desenvolvimento, os sucessivos governos portugueses não perceberam que, mesmo com a multiplicação dos automóveis e a massificação das viagens de avião a baixo custo, o comboio continuaria a ser um meio de transporte mais prático e mais em conta. O atraso é de tal ordem que, em 2017, Portugal tinha o terceiro pior serviço ferroviário da Europa, longe dos primeiros lugares de Suíça, Áustria, Dinamarca e Alemanha. De nada serviu que os estudos indicassem que, principalmente por questões ambientais, mas também por razões económicas, o comboio era o melhor meio para rumar a um futuro sustentável.

Um Estado sério não pode votar ao abandono um serviço público desta relevância, em particular no interior. Como diz Miguel Esteves Cardoso, "é pelos comboios que se julga o espírito de um país". Eu acrescento que um país só tem verdadeiro espírito de nação se tiver uma rede ferroviária robusta e de abrangência nacional que preste um bom serviço que o ligue e torne mais coeso.

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