“O mercado é propenso à especulação. E essa propensão é incontrolável”

Pedro Rebelo de Sousa acredita que a união bancária, além de longa e penosa, não vai ser um processo fácil “para os pequenos países, como Portugal, que deixaram de ter sistema financeiro”.

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Depois da crise financeira mundial de 2008, em entrevista ao PÚBLICO, Pedro Rebelo de Sousa admite que o sistema financeiro está melhor. Mas avisa que há elementos “imprevisíveis” que podem desencadear nova crise mundial, que dependem “dos cenários macroeconómicos e políticos que se estão a desenhar”.

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Depois da crise financeira mundial de 2008, em entrevista ao PÚBLICO, Pedro Rebelo de Sousa admite que o sistema financeiro está melhor. Mas avisa que há elementos “imprevisíveis” que podem desencadear nova crise mundial, que dependem “dos cenários macroeconómicos e políticos que se estão a desenhar”.

Dentro de um mês, cumprem-se dez anos passados desde a queda do Lehman Brothers [15/9/2008] que veio expor um sistema financeiro sustentado em dívida e especulação. Surpreendeu-o?
Para alguém que começou no sistema financeiro internacional, no qual trabalhei durante 15 anos, era evidente que os grandes grupos estavam a avançar no sentido de ir criando megaestruturas contornando o espírito e a letra da lei (isto nos EUA e depois nos outros países), o que estava a pôr em causa as bases do sistema criado após a crise de 1929/30, que tinham como elemento a Lei Glass-Steagall de 1933, que não permitia a ligação entre banca comercial e a banca de investimento, e impunha critérios de limitação à actividade bancária, versus outras actividades com afinidades como a seguradora. 

Está a referir-se ao final dos anos 80?
Sim, começou nos finais dos 80 para os 90, quando se verifica que o dinheiro tinha feito um circuito interessante: a economia mundial tinha tido como pólo dinamizador os EUA e a criação do Plano Marshall [o plano norte-americano de recuperação da Europa a seguir à Segunda Guerra Mundial], e, de repente, nos anos 70, emergiram as potências dos petrodólares, com o Médio Oriente a tornar-se uma realidade com peso no sistema financeiro internacional. Em meados da década de 80, os EUA continuam a ser uma grande força e a Europa uma crescente força, mas dá-se uma transferência do poder do eixo do Médio Oriente para o Japão, que explodiu. Este movimento suscita, em certos círculos, a preocupação de saber se a banca cumpria os critérios de capital e de controlo de crédito [em 1988 cria-se Basileia I].

Ou seja, estavam os dados lançados, mas no princípio da década todos acreditam que a economia mundial não vai parar de crescer e não se antecipam disrupções nos mercados?
Mas o pecado original estava lá. Como quadro superior de um banco americano, assisti a muita coisa – por exemplo, não havia “chinese wall” [o mecanismo que protege a circulação de informação privilegiada na banca de investimento e na comercial], a génese dos episódios anteriores: Segunda-feira Negra [1987], crise financeira dos emergentes [1997], a crise do rublo [1998], crise das dot.com [2000]; crise imobiliária [2007] e a crise das dívidas soberanas [2010]. Havia afloramentos sectoriais e conjunturais. E, subjacente a todos eles, estava a perversão total do sistema, que nenhum fiscalizador e regulador, mesmo com as regras de Basileia, controlava.

Quando em 2006 surgiram os primeiros sinais do subprime, porque é que é ninguém fez nada?
Havia uma combinação não virtuosa, negativa, entre fiscalizadores, supervisores e o sistema. E o sistema tentava negar a génese do problema, que, para ser resolvido, implicava ter de mudar tudo, reformular a actividade bancária, quer na conta de exploração, quer no balanço. E todos os bancos tinham de reponderar os seus capitais, as provisões, o seu próprio modelo de negócio.

Há uma certa ironia nesta crise, pois os problemas rebentam nos países – EUA e Inglaterra – dados como bons exemplos de capitalismo regulado...
Pois é. Há várias teses. E a minha é que houve, sobretudo da parte dos mercados anglo-saxónicos, o chamado “pretenso cumprimento formalista”.

Quer dizer?
Estava tudo bem. Era o jogo do faz-de-conta. Na crise houve uma conjugação de factores negativos: perversão do modelo da banca de investimento; reguladores pouco efectivos; fiscalizadores ainda menos efectivos. E agentes especulativos com uma perspectiva de ganhos imediatos, para gestores e accionistas. A governação falhou, quer nos bancos que operam no mercado, quer nos bancos centrais [os supervisores e reguladores] que se limitavam a cumprir rituais, facilmente manipuláveis e sem escrutínio.

Houve falta de compreensão por parte dos reguladores do que se estava a passar?
Quando o primeiro sinal surge na Grã-Bretanha [2007], não perceberam. 

O mercado não se auto-regula, é alimentado pela especulação?
Diria que é propenso à especulação. E essa propensão é incontrolável. E tenho pensado nisto: a geração dos millennials e as a seguir fizeram uma gestão das empresas em que o desempenho imediato e a criação de valor para o accionista eram primados que se sobrepunham a tudo o resto. Os gestores criavam valor para os accionistas e, por essa via, para si [bónus]. E isso acabou. É um dos ensinamentos que a crise nos deixa.

O que mudou?
A atitude dos reguladores e a preocupação de tornar a corporate governance mais substantiva e menos adjectiva. Não é a forma que deve prevalecer essa sem dúvida era cumprida nos casos do BPN, BPP, BCP, BES e PT a ponto de alguns deles ganharem prémios. É essencial criar uma estrutura de governance responsável.

Depois das várias crises que se sucederam desde 2008, o sistema bancário está hoje mais forte? Não há perigo de ajudar a abrir outra crise?
O sistema está melhor, funcionalmente, e estão a dar-se passos para atenuar uma eventual crise ou impedir que aconteça. Todavia, há elementos que a podem desencadear e que dependem sobretudo dos cenários macroeconómicos e políticos que se estão a desenhar. Há muitas frentes imprevisíveis: o senhor Trump; o futuro da União Europeia pós-“Brexit”; a manta de diversificação que se está a montar na Europa, com partidos populistas que põem causa o modelo europeu. E se o modelo europeu tem alguma coisa relevante para evitar uma crise é a UEM [União Económica e Monetária]. E esta ou se fortalece, ou desaparece. Há muitas incógnitas.

Foi partner de uma sociedade de advocacia inglesa. Como está a olhar para o “Brexit”?
Os ingleses estão confrontados com o estertor do seu império colonial. Este é realmente o fim da era vitoriana e, olhando para a rainha, percebemos que ela personifica o fim de uma viagem e o fim de uma Commonwealth [comunidade de nações de língua inglesa], que não se revê na liderança inglesa. E a Grã-Bretanha está confinada à sua natureza insular. E, como são pragmáticos, vão tentar que isso não aconteça de forma radical.

Como?
Têm alguns trunfos. E um deles são os mercados de capital e financeiro que, e embora tendo havido desde o referendo alguma saída, se mantêm no essencial. Ficarão lá. Segundo: num mundo em que uma das moedas de referência é uma incógnita, o euro e o yuan/renmimbi é outra incógnita, mas não é uma moeda desejada com presença internacional –, o facto de a Inglaterra ter a libra é relevante na parte monetária. O terceiro trunfo é o direito, de que não se fala. As cortes norte-americanas e britânicas têm a lex mercatoria [sistema jurídico usado no comércio internacional] O eixo é comum a todo o mundo anglófono. E protege o “Brexit”.

Já percebeu o que é Theresa May quer?
O que eles gostariam era de ter um tratamento igual ao da Dinamarca [que está fora do euro]. De ser uma Dinamarca, mas com maior peso. É a solução de Theresa May. E o desmando americano pode favorecer o pragmatismo inglês. Os ingleses pensaram que, voltando-se para os EUA, o velho aliado lhes resolvia os problemas. E o que o Trump disse foi para [May] “meter um processo” [à UE], que é a forma como ele resolve os problemas das falências das suas empresas. Não consegue chegar a um diálogo, mete uma acção e depois logo se vê. E May já percebeu que é uma maluquice.

O “Brexit” é irreversível?
Tudo na vida é reversível. Mas a ideia de “Brexit” – “Nós não fazemos claramente parte da UE, do espaço Schengen” – já era evidente antes e vai continuar. O “Brexit” vai tentar ser parte de uma relação comercial que privilegia a Europa e dizer: “Nessa medida, somos europeus.” E convenhamos que as idas e vindas da Europa, nomeadamente em termos de União Bancária, não ajudam. Os ingleses pensam: “Já resolvemos os problemas da banca, já pagámos o preço e já estamos a vender os bancos, e não queremos sujeitar-nos a ter de reportar ao BCE.”

Sem a Grã-Bretanha, a UE não fica diminuída?
Claro. A Inglaterra tinha um poder moderador na UE, que sempre exerceu, e que era fundamental para garantir o equilíbrio face à Alemanha. E mesmo em termos da onda nacionalista que se verifica na Europa, mesmo tendo lá dentro essa onda, não existe um movimento de extrema-direita, porque eles têm uma estabilidade comportamental. A Inglaterra também trazia para as instâncias europeias a tal componente do seu direito, que permitia olhar para os factos de uma outra forma. Infelizmente, acho difícil que não haja “Brexit”. Acho politicamente quase impossível uma reversão.

Como avalia o futuro da União Bancária Europeia concebida em 2013 com três pilares [supervisão do BCE, mecanismo de resolução, garantia de depósitos], mas que só tem dois a funcionar. Devia estar concluída em 2018, mas os alemães já avisaram que o fundo de garantia de depósitos europeu será adiado sabe-se lá para quando. Não é um risco?
Sou um homem de fé e acredito no sucesso. Mas os indicadores que se conhecem mostram uma situação extremamente difícil. 

Então?
O processo vai ser longo, penoso e não vai ser fácil para os pequenos países, como Portugal, que deixaram de ter sistema financeiro. E, num quadro que vai diferindo o processo, o mais previsível é que a banca nacional seja penalizada. Os nossos bancos vão tentar cumprir com uma série de requisitos que os colocam em posição de fragilidade, no contexto do eixo franco-alemão que pretende que haja uma concentração bancária, com pequenos players para satisfazer os populistas. 

A criação de grandes grupos europeus é uma boa solução?
É má a vários títulos. Desde logo é má para o consumidor. E se alguma coisa a crise de 2008 nos ensinou é que estava a haver demasiada concentração em big players que são too big to fail, e depois lá vai o contribuinte resgatar... E é mau do ponto de vista da estabilidade do sistema.

Mas é melhor para o BCE?
Um sistema com menos bancos é melhor para os fiscalizadores e para os supervisores. Há incógnitas. Não é claro que o sistema financeiro alemão esteja hoje saneado e regenerado [cerca de 70% dos bancos alemães ficaram fora da supervisão do BCE]. E o futuro da banca italiana também não é claro. A concentração franco-italiana (UniCredit-Société Générale) induzida pela [UE] pode ser ou não virtuosa. Há que dizer que na crise houve claramente um tratamento discriminatório por parte da Europa em relação aos países do Sul: Portugal, Grécia e Irlanda. Mas a situação mais grave é a portuguesa. 

Também houve desleixo das nossas autoridades?
Exactamente. Com a ideia de que tínhamos de sair rapidamente de debaixo da tutela da troika – BCE, FMI e UE – tomaram-se decisões que nem na Grécia foram tomadas. E sempre na base do experimentalismo [Novo Banco, Banif].

Nota: Entrevista corrigida às 14h de 13 de Abril. Na primeira resposta, Pedro Rebelo de Sousa referiu a Lei Glass-Steagall e não a Lei Sarbanes-Oxley, como fora transcrito por lapso pela jornalista