A soul de Manchester continua viva

O LP de estreia da dupla de hip hop inglesa confirma tudo aquilo de bom que os primeiros trabalhos indiciavam, mas sinaliza uma imobilidade criativa.

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Travel Light: arranjos perfeitos, orquestração coesíssima; fica-se, contudo, com a impressão de que já ouvimos isto noutros discos DAN MEDHURST

Desde 2016, ano em que se estrearam com dois singles (Still Standing e No Strings Attached), que a dupla composta pelos ingleses Konny Kon (DJ, produtor, rapper e membro integrante do colectivo Broke’N’English) e Tyler Daley (rapper e cantor) –antes de se juntarem, eram já nomes respeitados a solo na cena hip-hop inglesa – alcançou um certo estatuto de culto, com assinalável expansão entre ouvintes do resto da Europa (e a que Portugal não foi alheio). Daqui parte, por isso, e antes de mais, o nosso mea culpa pelo facto de, há um ano, nestas mesmas páginas, nos termos esquecido de os referenciar quando, a propósito do brilhante disco de Loyle Carner, falávamos numa certa anorexia do rap inglês (por oposição ao grime, actualmente numa fase de grande fulgor, um sub-género mais conectado com a música bass de firmes raízes no UK e representado por Stormzy ou Skepta, nomes que já actuaram em Portugal este ano).

Falar em “hip-hop” é, porém, assaz injusto e redutor na hora de olharmos para o trabalho dos rapazes de Manchester – cidade historicamente “musical” por motivos óbvios (New Order, Smiths, Joy Division, Oasis), mas tradicionalmente afastada (ao contrário de Londres) do hip-hop (tendência combatida nos últimos anos por nomes como Mouse Outfit, a crew Levelz, IAMDDB, LayFullstop ou Burgundy Blood) –, na medida em que, paralelamente à cadência das batidas alinhadas com aquele género, é a (neo)soul (e aqui, sim, Manchester é, obviamente, uma das grandes cidades-soul inglesas, mais rigorosamente, da chamada northern soul, movimento dos 60 em diante que repescou a soul americana obscura de batida mais vigorosa e acelerada), indubitavelmente, a matriz fundamental da sua música (isso o que os distingue, portanto, das duplas clássicas do rap americano dos anos 90). Circunstância que, veiculada pela utilização predominante das sempre melífluas, sempre lânguidas, teclas (muito rhodes, pois claro), sopros, cordas e sintetizadores, é reforçada pela distinta voz de Daley, performer capaz de alternar entre o rap cru e o canto mais celestial tributário do melhor R&B dos anos 90 – aliás, globalmente falando, serão mais abundantes, até, os momentos cantados do que rappados. Depois de mais uns quantos singles avulsos e um EP editado no ano passado (The Story So Far...), eis a estreia no formato longa duração, conjunto de treze canções cujo grande problema – embora, verdade seja dita, tomara a muitos discos padecerem deste tipo de “problemas” – reside na sua relativa indiferenciação e, sobretudo, na sensação de “ordem”, de que tudo está “no sítio”, sem rasgos ou arrojos que puxem o disco da sua palpável zona de conforto (a qual, nos seus momentos mais sensaborões, como em Fear of Flat Planet ou no proto deep house de Vibrations, quase resvala para banda sonora de sunsets e gin tónicos, a mesma patologia que acomete, de modo mais gravoso, a música do também inglês Tom Misch, recentemente ouvido no festival SBSR). Essa zona chama-se neo soul, corrente americana de finais de 90/inícios dos 2000 que, liderada por D’Angelo ou Erykah Badu, fez uma re-leitura da soul clássica dos 60/70 (a da Motown, Stax, etc., ou seja, aquela a que, curiosamente, a northern soul de Manchester de algum modo sempre se opôs) a partir das possibilidades oferecidas pela electrónica, o R&B e o hip-hop. Dito de outro modo, se Travel Light tivesse surgido por essa altura, teria, hoje, o estatuto de clássico; em 2018, soando tudo muito bem, é certo, de uma ponta à outra (arranjos perfeitos, orquestração coesa), fica-se, contudo, por esse travo saudoso, previsível, por uma fórmula que, não arriscando um milímetro, nos devolve a impressão de que já ouvimos tudo isto noutros discos (Hoodman2Manhood parece uma cover de algo remoto que nos é muito querido). Isto dito, que o leitor não se engane: se estiver menos familiarizado com essa neo soul que o tempo levou (hoje substituída, de algum modo, por esse genérico carimbo de “contemporary R&B”), Travel Light será uma agradabilíssima viagem, de que Sling Shot Riddim (com a presença, nem de propósito, de Terri Walker, representante da neo soul feita em terras de Sua Majestade), The Heart Beat, 360º (o baixo, como o de All on You, distorcidíssimo, muito boogie, “espacial”, que tanto traz Amp Fiddler como Dâm-Funk para cima da mesa) e, em especial, Daddy’s Car (comoventíssima rememoração desses momentos familiares que não mais nos deixam ao longo da vida) constituem as curvas mais entusiasmantes.

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