“Sou mais criticada por ser feminista do que por fazer pornografia”

Aos 41 anos, a sueca Erika Lust é uma referência no mundo da indústria porno feminista. Decidiu começar a fazer filmes quando percebeu — enquanto consumidora de porno e activista feminista — que o seu corpo “reagia àquilo que via, mas não gostava daquilo que via”. Hoje, financia outras mulheres realizadoras e garante que o movimento de que faz parte está a crescer.

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Erika Lust Miguel Manso

Erika Lust faz pornografia feminista, que oferece a quem a vê o olhar de uma mulher sobre o sexo. Mostra corpos diferentes, de idades diferentes, a ter sexo que será mais próximo da realidade (pelo menos mais do que aquilo que mostra a maioria dos filmes pornográficos). Coloca as personagens femininas num papel central, trata-as como seres humanos, algo que, diz, a pornografia convencional não faz. É crítica deste tipo de pornografia, porque “adopta uma perspectiva masculina”, em que “a mulher é uma espécie de ferramenta para ajudar o homem a ter um orgasmo”.

Considera-se “uma outsider” da indústria porno por fazer um trabalho fora dos caminhos mais tradicionais . “Quando comecei, não entendiam o que estava a fazer e criticavam-me.”

A realizadora nasceu e cresceu na Suécia. Em 2000, aos 23 anos, mudou-se para Barcelona depois de ter concluído uma licenciatura em Ciência Política na Universidade de Lund. Foi na cidade espanhola que estudou realização e é lá que vive desde essa altura.

O site XConfessions, onde os internautas partilham as suas fantasias sexuais, serviu de inspiração a cem curtas metragens eróticas. O seu trabalho já foi premiado em festivais da área como o Feminist Porn Awards e o Cinekink.

Em 2017, lançou o The Porn Conversation, um site que disponibiliza ferramentas aos pais e educadores para os ajudar a falar sobre pornografia com crianças e jovens. Falar do tema é uma porta aberta para abordar muitas outras questões, defende.

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Erika Lust Films

Lançou o primeiro filme, The Good Girl, em 2004. Como é que tudo começou?
Começou num momento em que eu, como muitas outras pessoas, era consumidora de pornografia. Estava interessada em sexo e queria saber mais. Era jovem, estava nos meus primeiros anos de faculdade — aquele momento em que estás por tua conta e começas a pensar mais e mais na tua identidade sexual, no que és, do que gostas — e tinha um namorado que me introduziu à pornografia. Uma noite, ele veio ao meu quarto e quis ver um filme. Senti que o meu corpo reagia àquilo que víamos, mas, ao mesmo tempo, não estava a gostar daquilo que via. Começou como um conflito. Em vez de ver pornografia e desfrutar, ela tornou-se um problema para mim. E comecei a questionar-me “Porque é que não gosto disto? O que é que está a acontecer-me?”

Que tipo de pornografia era essa?
Pornografia dos anos 90, que era diferente da de hoje, mas tinha uma coisa em comum com a que é produzida agora: a maior parte também era feita por homens e para homens e tinha um aspecto muito convencional. Foi a era da série Marés Vivas, do silicone, das loiras, das unhas compridas. Foi com isso que cresci e era esse o estereótipo contra o qual lutávamos. Hoje o mundo é melhor para as mulheres, que crescem em contacto com muitos tipos de corpos diferentes. Mesmo assim, quando vemos revistas de moda, filmes ou televisão, a mulher modelo é branca, magra e jovem. É isso que mais vemos. Mas acho que aos poucos estamos a começar a ver diferentes tipos de corpos, diferentes idades e está a ficar melhor.

Porque é que aquele estilo de pornografia não lhe agradou?
Eu já era feminista. Já estava consciente das estruturas de poder na nossa sociedade. Era muito analítica e crítica. Em vez de desfrutar, comecei a analisar. Depois comecei a pesquisar e a tentar encontrar pornografia para mulheres. Não havia grande coisa. Encontrei um repositório da Candida Royalle, uma das pioneiras na realização de pornografia centrada nas mulheres. Quando vi os filmes dela, percebi que eram drasticamente diferentes dos outros.

Esses filmes eram diferentes em quê?
Ela preocupava-se com o ponto de vista das mulheres, com as personagens femininas e com o argumento. De repente, eu sentia-me ligada à personagem feminina e com o que estava a passar-se na sua fantasia erótica. A maioria da pornografia produzida hoje adopta uma perspectiva masculina. É feita por homens, para homens e tem um homem como personagem principal. A mulher é uma espécie de ferramenta para o ajudar a ter um orgasmo. Não é sobre o prazer das mulheres ou as suas histórias.

Como é que o seu trabalho contribui para uma forma diferente de fazer pornografia?
Estou a tentar envolver outras mulheres nos meus filmes para contar mais histórias do nosso ponto de vista. Como é que vivemos a nossa sexualidade? O que é que desejamos? Com o que é que fantasiamos? Como é que sentimos prazer? Creio que muitas mulheres têm dificuldades com essas questões. Especialmente mulheres jovens que recorrem à pornografia para tentar perceber o sexo, uma vez que o porno se tornou a nossa educação sexual. E isso não é bom. A pornografia ética e feminista que se preocupa com o outro é uma parte ínfima desta indústria. Mas, quando olhamos para os números, o que podemos concluir é que um terço do tráfego online é dedicado ao porno. E isso é muito.

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Isso acontece porque as pessoas não admitem que vêem porno?
Sim. Isso acontece muito. Não é algo de que as pessoas se orgulhem particularmente. Temos este estigma associado ao sexo e à pornografia. A maioria das pessoas julga que a pornografia é algo sujo e mau. Têm vergonha da sua sexualidade, das suas fantasias, dos seus fetiches. Têm medo que as outras pessoas as julguem. E mais do que isso: julgam-se a si próprias. Faz parte da cultura cristã.

Há muitas diferenças entre a forma como as pessoas encaram o sexo na Suécia e em Espanha?
Na verdade, não. A Suécia é uma sociedade diferente. É um dos países feministas de vanguarda no mundo, onde as mulheres têm assento nos parlamentos, governos, conselhos de administração... Muitas vezes isso é por causa das políticas que exigimos. Na Suécia dividimos de forma igual a licença de parentalidade, ao contrário do que acontece no Sul da Europa. E temos leis que obrigam o homem a fazer a sua parte. Esses dias não podem ser transferidos para a mulher. Isso mudou a sociedade.

Ainda assim, a Suécia é uma sociedade dividida. É muito aberta quando se trata de educação sexual e compreensão da sexualidade, mas quando se trata de pornografia, de prostituição e de trabalho sexual, é um país muito difícil. Na Suécia, o trabalho sexual foi afectado pelo modelo nórdico. Isso significa que não é a trabalhadora do sexo que é punida. É quem compra. É uma lei muito prejudicial para os profissionais do sexo. Esse tipo de lei torna mais difícil o seu trabalho e coloca-os em grande perigo.

No que se refere à pornografia, acho que as pessoas são mais abertas na Espanha do que na Suécia, porque o movimento feminista na Suécia chegou cedo e naquela época as feministas eram contra a pornografia em todos os aspectos. Eu acho que elas marcaram o caminho de como o movimento feminista deveria pensar. Mais tarde surgiram novas ideias que diziam que o sexo deve ser incorporado no pensamento feminista, e acho que hoje é a ideia aceite.

Como foi a sua educação? Moldou a maneira como pensa sobre sexo?
Sim. Definitivamente. Tive uma educação sexual muito boa, apesar de os meus pais nunca terem sido uns pais liberais, que me explicavam tudo. Eles deixavam essa responsabilidade à escola, o que eu acho que é bastante comum para muitos pais, que têm medo de falar sobre o assunto com os filhos. Tive a sorte de frequentar a escola sueca — a Suécia foi um dos primeiros países do mundo a tornar obrigatória a educação sexual. Quando tinha 10, 11, 12 anos, tínhamos conversas com sexologistas na escola. E não foi apenas a informação prática ou assustadora que é passada muitas vezes. Parece-me que o sexo é algo com que precisamos de lidar de uma maneira melhor.

As suas filhas de sete e 11 anos sabem que faz filmes sobre sexo?
Sim. Elas sabem que realizo filmes para pessoas adultas, em que as pessoas estão a fazer sexo, onde estão nuas e a beijarem-se muito, filmes sobre excitação. Como é normal na idade delas, acham que o sexo é nojento.

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Erika Lust Films

Apesar do sucesso, o tipo de trabalho que faz ainda é de nicho...
Sinto-me muito feliz e abençoada. Quando fiz o meu primeiro filme, em 2004, já sentia que poderia escolher qualquer história. Não é realmente a história que importa, é como se aborda o tema. Creio que precisamos de muito mais pessoas como eu, que ousam criar material audiovisual que lide com a sexualidade — precisamos de ver e querer ver. É importante que desenvolvamos uma sexualidade saudável. Acho que é importante também dar uma alternativa a todos os pornos maus, com tantos valores maus. Há muita homofobia, mesmo que não se pense sobre isso, porque se tem este meio como muito aberto e liberal... Não é, realmente — por exemplo, há todo um género em que mulheres brancas têm sexo com homens negros. Há muito fetichismo racista. Se formos aos “tubes” [sites como o Porntube, Redtube e Pornhub, que disponibilizam conteúdo pornográfico de forma gratuita], há uma série de categorias associadas a fetichismos racistas que não são correctas.

Visita esses sites com frequência?
Às vezes. Fico muito triste quando os vejo. Não me agradam. Há muitas pessoas que estão a consciencializar-se sobre a importância do consumo ético da pornografia. Assim como estamos a começar a preocupar-nos com a comida que estamos a comer, os móveis que compramos ou as roupas que usamos. Estamos a começar a pensar no processo de produção e a questionar: “Como é que isto foi feito? Quem está a trabalhar por trás disto?”

Já aceitou que essas plataformas vão prevalecer?
Não há muito que eu possa fazer. Os “tubes” estão a disponibilizar o meu conteúdo e o de outros criadores. Estão a colocá-lo de graça e não estão a ser processados por isso. De alguma forma, não é completamente ilegal. Podem fazê-lo. Como criadora de conteúdo, tenho de reclamar, escrever-lhes, dizer que sou a autora e mandar uma prova disso. Se fizer isso, retiram-no. Mas isso é um dia inteiro de trabalho. É muito difícil vencer estes sites, estão em muitos países. É muito difícil descobrir quem são os donos.

Que universo de pessoas consome o tipo de pornografia que produz?
Estamos a crescer a cada ano. Sinto que este movimento está a começar a crescer por causa de consumidores responsáveis e interessados numa pornografia ética.

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Quantas mulheres realizadoras conhece?
Todos os anos há mais. Quando comecei, há 14 anos, não havia muitas. Há dois anos, percebi que tinha a capacidade de financiar outras pessoas. Colocámos em movimento um sistema de distribuição, temos um público que quer mais e eu não quero comprometer a qualidade. Tive a oportunidade de montar uma produtora e começámos a financiar filmes de outras realizadoras. Já fizemos cerca de 25 filmes. Acho que ainda não temos nenhuma realizadora portuguesa, mas se há alguém a ler isto que queira seguir uma carreira como produtora de filmes eróticos, contacte-me para se juntar à revolução.

Ainda que assuma a diversidade sexual como algo central nos seus filmes, tem críticas?
Claro! Por exemplo, quando viajo e participo em projecções dos filmes, há sempre pessoas na plateia a fazer perguntas e a pedir-me para as representar de alguma forma. Dizem: “Porque é que não faz mais filmes trans?” Ou: “Porque não faz mais filmes da classe trabalhadora?” Ou: “Porque não faz mais filmes de pessoas mais velhas?” A minha resposta é quase sempre a mesma. Sou uma pessoa. Tento fazer o máximo. E não é fácil incluir todos em tudo. Mas posso dizer que o meu trabalho nos últimos cinco anos tornou-se muito melhor, mais representativo. Há um mês, filmei um casal que tem 71 e 72 anos. Eles foram surpreendentes. Não eram actores porno.

Trabalha com pessoas que não são profissionais?
Sim, tento incluir outras pessoas que sinto que têm algo em particular que podem representar.

E porque acha que essas pessoas se interessam por participar nos seus filmes? É porque paga melhor? Pelo tipo de trabalho que faz?
A maioria das pessoas é por causa do tipo de trabalho que fazemos. Querem fazer parte, sim. Mas também porque pago melhor do que a maioria das pessoas na indústria porno.

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Mantém contacto com homens realizadores da indústria porno?
Não muito. Quando comecei, muitos deles atacavam-me. Não entendiam o que estava a fazer e criticavam-me. Eu nunca me liguei realmente à indústria. Sempre me vi como uma outsider. Não vou à maioria dos festivais, porque não acho interessante. Às vezes, penso que talvez devesse participar mais, porque isso poderia ser uma maneira de mudar mais e provocar mais. Mas eles não estão interessados. Quando comecei, tinha comentários muito feios. Eram muito agressivos comigo e com o que queria fazer. Precisamos de criar um ambiente em que, como mulheres, possamos ocupar espaço sem ter de enfrentar críticas pessoais.

Afinal, o que é a pornografia feminista?
É o olhar feminino. É a mulher por trás da câmara a mostrar o que queremos e como queremos. É a mulher a ser tratada como um ser humano. Não como um objecto bonito ou uma ferramenta sexual para fazer o homem ter um orgasmo. É sexualidade em igualdade. Acho que muitas vezes sou mais criticada por ser feminista do que por fazer pornografia. Alguns grupos de feministas ainda têm medo da pornografia. Sentem que a pornografia ainda degrada a mulher. Mas eu acredito que isto pode ser muito importante para as mulheres. Acho que a nossa sexualidade é poder e precisamos de nos apropriar dela. Mas ainda é difícil, porque nós somos julgadas por causa disso.

E na produção faz questão de trabalhar com mulheres?
Trabalho com muitas mulheres. E acho que, se colocarmos mais mulheres na indústria porno, teremos uma perspectiva melhor. Podemos mostrar a sexualidade do ponto de vista feminino que representa todas nós e não apenas um pedacinho de alguns homens. Eu tenho as melhores mulheres possíveis no meu escritório. E tenho também alguns homens — são maravilhosos homens feministas, são muito conscientes, aprendem todos os dias e atrevem-se a ser liderados por mulheres. Toda a indústria porno deveria ser feminista. Mas esta é uma revolução que não pode ser feita só pelas pessoas que fazem pornografia.