Esta palavra “Descobrimentos”…!

É bom discutir conceitos, mas é necessário, fundamentalmente, ir muito além das palavras.

Uma discussão efémera e sem consequências?

Não sei porque acabei por vencer o meu comodismo de aposentado para vir discutir a questão do uso do nome “Museu dos Descobrimentos”.

O certo é que não acredito muito nestas discussões, em geral supérfluas e efémeras, por mais interesse que tenha a sua temática. Não levam geralmente a nada, pois os responsáveis pelas decisões finais são, normalmente, os poderes instituídos. Vejam o que se passou com os feriados: houve em 2012 argumentos sérios de historiadores e cidadãos contra a sua abolição ou suspensão. Nenhum argumento significativo se esboçou a favor dessa eliminação, a não ser o do puro pragmatismo. E, todavia, quatro feriados foram “suspensos” ou “extintos”, até que outro governo, com outra ideologia, decidiu trazê-los de volta.

O tal “Museu dos Descobrimentos”

A questão terá nascido quando o presidente da Câmara de Lisboa terá renovado a sua promessa eleitoral de que iria criar um Museu dos Descobrimentos ou das Descobertas. O assunto preocupou historiadores e investigadores de ciências sociais e naturais e cidadãos de formação diversa, originando uma discussão que ultrapassou as fronteiras da capital e do país, talvez porque se tratou de mais um museu para Lisboa. Não se discutiu se o museu deveria ser localizado noutro lugar ou se não seriam prioritários outros museus, alguns que andam na penumbra há anos e outros que nem saem do domínio das ideias desconhecidas.

Mas falemos do tal “Museu dos Descobrimentos”, recordando que um museu é uma fonte de investigação e de ensino, onde a História se deve revelar como Ciência, não esquecendo o valor da Memória, portadora de ideologias e da vertente pedagógica, que difere da História mas que acaba por ser sempre a sua imagem mais viva.

A palavra e o conceito “Descobrimentos”

 O conceito “Descobrimentos” adquiriu na nossa língua um sentido próprio. Sempre nos lembraremos das palavras de deslumbramento do conhecimento do “novo”, em matéria de terras, de mares, de céus e de estrelas, proclamado no Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira, dedicado a D. Manuel I. Sem dúvida que os portugueses, como outros povos, foram “descobrindo” depois do século XV novos lugares, novas técnicas náuticas, novas gentes, pondo em ligação culturas diferentes. Mas criaram também, naturalmente, como é próprio do homem, novas formas de domínio, até religioso, novas políticas de império político, novas fontes e modos de exploração... Assim, os “Descobrimentos” ficaram sendo considerados como um processo histórico, um conceito plástico, que é passível de se lhe ir encontrando significados diferentes.

Os historiadores foram-lhe dando vários sentidos, desde a história “documentalista” e “factualista” de Damião Peres, ao estudo das suas “políticas”, considerado de forma arguta por Jaime Cortesão, à análise das suas técnicas, por Luís Albuquerque, e às formas de exploração económica, nos notáveis estudos de Vitorino Magalhães Godinho. No meu tempo de estudante, usar Magalhães Godinho era uma “heresia”, pois punha em causa a ideia de uma concepção nacionalista e missionária de “Descobrimentos”, aproximando-a de uma visão marxista. Por isso um dos seus livros não foi integrado na “Colecção Henriquina”, organizada aquando do centenário da morte do Infante D. Henrique, em 1960.

Se bem que possa ter um significado eurocêntrico e mesmo lusocêntrico, foi o termo usado no final do século XX, bem depois do 25 de Abril, para caracterizar a comissão organizadora da comemoração da chegada dos portugueses a vários pontos do mundo. E, assim, a Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, criada em 1986, teve à frente investigadores de formação e concepção tão diferentes como Vasco Graça Moura, Luís Albuquerque, António Manuel Hespanha ou Joaquim Romero Magalhães...

A palavra “Descobrimentos” tem, pois, sempre de ser considerada no nosso vocabulário histórico, por mais defeitos que ela possa ter (haverá conceito mais usado e deficiente, porque encerra um evidente erro histórico, do que “Idade Média”?). Trata-se de um termo que pode mesmo ser assumido pelos povos que foram “descobertos” pelos “europeus”, pois eles próprios “descobriram” novas realidades civilizacionais e culturais (tendo perdido outras, como todos nós, povos do mundo), mesmo que à custa de formas de exploração e de violência. O certo é que, para o bem e para o mal, os tais “povos descobertos” e hoje independentes vão organizando a sua história e jamais podem abdicar do que também foi o seu passado “europeu” ou “colonial”. Por isso, a escolher um termo para o dito “Museu”, será melhor “Descobrimentos” do que “Descobertas”, conceito demasiado amplo, ou “Viagens” ou “Expansão”, até porque este traz também consigo o conceito de domínio e de “Império”.

A forma e o conteúdo

Mas será que com esta argumentação estou a dar razão à “Nova Portugalidade” que tanto tem defendido o conceito de “Descobrimentos”? De modo algum. A sua petição trata-se de um texto caracteristicamente ideológico, cheio de revivalismo nacionalista. Estou a pôr de parte o manifesto de historiadores e investigadores de ciências sociais que puseram em causa o título “Museu dos Descobrimentos” e que procuraram chamar a atenção para novos conteúdos? Obviamente que não. E será que elimino de vez a ideia de relevar o que há de interessante no conceito de “descoberta”, que Carlos Fiolhais salientou, devido à sua visão de físico e de coordenador de uma colecção que pretende revelar o papel dos portugueses nas “descobertas” de diversas áreas do saber? Julgo que também não, embora a ideia de um “Museu das Descobertas” me pareça demasiado ampla e imprecisa. Enfim, se houve algo de interessante neste debate é que se colocaram variadas posições, até aquela que revela que a Memória é algo de sentidamente ideológico. Como tenho procurado provar nos meus textos, a ideologia faz parte da visão cultural do historiador. O que não pode é ser a alavanca da análise histórica, transformando a História numa ideologia. Já a Memória, essa, de forma espontânea ou estratégica, anda-lhe sempre directa ou indirectamente ligada.

Para desvendar a minha posição cheia de dúvidas, como convém a qualquer cientista, deixem-me que utilize a minha ego-história.

Já não frequentei, como aluno, a cadeira de História dos Descobrimentos e da Colonização Portuguesa, que esteve em vigor no curso de História até à reforma de 1957. No meu tempo, a disciplina em que aprendíamos os “Descobrimentos” chamava-se História da Expansão Portuguesa, nome que se alargou para História dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa na reforma Cardia de 1978. Na minha faculdade, o instituto em que se realizavam estudos nesta temática chamava-se “de Expansão Ultramarina”. Como professor, não pertenci a esse instituto e, embora tivesse discutido várias vezes a estreiteza desse conceito, não me preocupei com a sua conservação. Nomes são nomes...

No caso que nos importa, o que entendi sempre, e por isso orientei algumas teses, é que deveríamos actualizar e alargar a nossa investigação, analisando não só as várias vertentes dos descobrimentos e da colonização, como o colonialismo (conceito mais moderno) e o anticolonialismo, como deveríamos colaborar com os países de língua oficial portuguesa no sentido de construir cientificamente a sua história, vista em várias perspectivas e profundidades. Mas não apenas para estudar os pontos de encontro das civilizações (positivos ou negativos) e sim também para analisar, num sentido antropológico e sociológico, as culturas e civilizações autóctones ou o que delas resta. Essa é que deveria ter sido, desde o início, a política de ciência e de educação, dos governos e das universidades e da CPLP.

Quanto ao nome de um Museu, só interessa na medida em que pode apresentar um Programa. Se não for assim, é apenas uma palavra. O certo é que continuamos nas nossas universidades e faculdades — começo pela minha... — quase sem estudos sistemáticos nessas áreas paralelas e de confluência. E, no entanto, temos já alguns doutorados de qualidade a trabalhar nesses temas, muitos deles que se encontram em situação de desemprego ou de subemprego, fazendo parte do submundo dos precários da sociedade neoliberal. É bom discutir conceitos, mas é necessário, fundamentalmente, ir muito além das palavras.

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