V. S. Naipaul, o escritor e a máscara

O Nobel da Literatura em 2001 criou uma persona com a dimensão da literatura que produziu. V. S. Naipaul morreu aos 85 anos com uma obra que indaga acerca da identidade e carrega a marca do trauma.

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"Eu sou a soma dos meus livros", afirmou o escritor no dia em que recebeu o Nobel da Literatura, em 2001 NFS - Nuno Ferreira Santos

"Eu sou a soma dos meus livros", afirmou V.S. Naipaul perante a Academia Sueca no dia em que recebeu o Nobel da Literatura. Estava-se em 2001 e os anos que se seguiram vieram confirmar isso mesmo, que ele era uma espécie de imperador num império de um homem só, como o definiu o crítico James Wood. Um império povoado pelas personagens e o seu criador, ficcional, mas cheio de autobiografia, de alguém a sentir-se estrangeiro em qualquer parte, sem casa, arrogante com as suas origens, um provocador nas inúmeras declarações cáusticas acerca de política, sociedade e religião; um misógino, conservador na vida e inconformado experimentador da novidade na escrita.

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"Eu sou a soma dos meus livros", afirmou V.S. Naipaul perante a Academia Sueca no dia em que recebeu o Nobel da Literatura. Estava-se em 2001 e os anos que se seguiram vieram confirmar isso mesmo, que ele era uma espécie de imperador num império de um homem só, como o definiu o crítico James Wood. Um império povoado pelas personagens e o seu criador, ficcional, mas cheio de autobiografia, de alguém a sentir-se estrangeiro em qualquer parte, sem casa, arrogante com as suas origens, um provocador nas inúmeras declarações cáusticas acerca de política, sociedade e religião; um misógino, conservador na vida e inconformado experimentador da novidade na escrita.

Nada de fórmulas repetidas, podia ser uma máxima obsessivamente repetida a si mesmo enquanto autor, sempre a ecoar, e que ele transmitia a quem o quisesse ouvir. Foi um homem controverso que fez da literatura o seu território pessoal de extrema elegância, indagação acerca da identidade e busca de verdade. Sir Vidiadhar Surajprasad Naipaul, Vidia para os mais próximos, morreu neste dia 11 de Agosto, a menos de uma semana de completar 86 anos

Sempre houve poucos consensos à volta do nome de V. S. Naipaul. A qualidade da literatura que produziu raramente foi contestada, no entanto ele é um dos exemplos em que a biografia interferiu no modo como a sua obra foi – e é – lida. Toda a ira provocada pelas declarações e alguns actos de Naipaul só se justificava porque os seus livros causavam igual admiração. O escritor Salman Rushdie resumiu essa ambivalência de carácter na sua reacção à morte de Naipaul. “Discordámos durante toda a nossa vida, sobre política, sobre literatura, e sinto-me tão triste como se tivesse acabado de perder um querido irmão mais velho. RIP Vidia.”

Jornalista, escritor de viagens, romancista, V. S. Naipaul nasceu na ilha de Trindade a 17 de Agosto de 1932 e parte da sua obra foi construída, como a sua própria identidade, nos estilhaços e sobre o legado do colonialismo. Ao atribuir-lhe o Nobel, a Academia alertou para a sua suprema capacidade em unir narrativa perspicaz e escrutínio incorruptível ao contar histórias quase sempre suprimidas. Em parte, é essa a universalidade da sua literatura. A realidade é mais negra: a inesgotável capacidade de provocar irritação e desconcerto. Em 1983, o famoso jornalista inglês Bernard Levin perguntou-lhe se ele tinha nascido em Trindade. Ele respondeu que sim, mas que achava o facto um erro terrível. O episódio consta de The World  is What it Is, a biografia autorizada de Naipaul escrita há dez anos por Patrick Fench – e que mais tarde Naipaul também viria a contestar –, um livro que põe, par a par, o escritor genial e um homem muito próximo de ser um monstro.

“O afastamento de Naipaul da sua terra natal tornou-se parte da sua persona, uma persona que ele inventou de modo a concretizar a sua ambição precoce de escapar da periferia e ir para o centro, de deixar os sem poder pelos poderosos, e de se tornar um grande escritor”, escreve French na introdução ao livro que parece confirmar a construção de uma personagem capaz de cumprir a ambição de um rapaz cheio de traumas. Ele vinha de um meio pobre, de gente subjugada, e não queria menos do que ser o maior escritor do mundo. Uma vontade que despertou tinha ele dez anos e levou consigo para Inglaterra, aos 18, depois de ganhar uma bolsa de estudo em Oxford. As palavras seguintes de French ajudam a contextualizar o pensamento do autor de obras como Uma Casa Para Mr. Biswas, A Curva do Rio ou O Enigma da Chegada. “Muitas vezes pensei nele como alguém a correr praia acima com a maré a avançar atrás e a tentar ficar um simples passo à frente da água. De forma a tornar-se naquilo que ele queria, teve de se tornar outra pessoa. Não poderia permanecer regional. A sua ambição estava ligada ao medo, como estão muitas vezes num escritor ou num artista criativo: medo de falhar, medo de não conseguir escrever, medo de desaparecer, medo do colapso mental e físico, medo que estejam a tentar derrubá-lo, medo de perder a face, medo de der descoberto.” No fim, escreveu o seu biógrafo, pouco mais havia de verdade a não ser uma máscara de si próprio.

Foram 50 anos a viver assim, profissionalmente, desde a publicação em 1957 de The Mistic Masseur. Seguiram-se trinta títulos entre ficção e não-ficção, muitos prémios, entre eles o Booker, em 1971, com In a Free State, e o último livro, em 2010, Uma Máscara de África. O princípio com uma escrita cómica sobre a vida caribenha, pouco depois as crónicas de viagem, romances com paisagens mais alargadas. A Índia, Antilhas, África, Inglaterra. Com isso criou a sua própria paisagem, artística, polémica e política, marcada por episódios como o desprezo pela primeira mulher, a relação sadomasoquista que manteve com a amante de vinte anos, que terá espancado até as mãos lhe doerem – vem na biografia; a confissão a French de que foi “um grande prostituto” no casamento com Patricia Hale; a comparação, pelo seu “efeito calamitoso”, entre o Islão em 2001 e o colonialismo; a afirmação de que era capaz de reconhecer se um romance era escrito por uma mulher após apenas 20 páginas de leitura; a zanga de mais de 15 anos com o escritor Paul Theroux. Naipaul vendeu por 1500 dólares um exemplar que o então amigo lhe tinha dedicado. Theroux descobriu e acusou-o publicamente de ser “racista, egoísta e mercenário”. O mal-estar terminou em 2011 com a mediação do amigo de ambos, o também escritor Ian McEwan.

São polémicas muito dissecadas e com a perniciosa capacidade de nublar a leitura de uma obra que percorre todos hemisférios, de uma dimensão incomodamente humana e fazedora de imagens. A primeira, que ele recorda como sua, vem na biografia de French. É o uniforme cor de malva da enfermeira negra que o tratou de uma pneumonia no hospital de Port of Spain, capital de Trindade. Naipaul tinha dois anos e porventura é uma recordação ficcionada.