O Bons Sons faz-se de muitas mãos e umas têm 95 anos

A aldeia de Cem Soldos está a desenvolver um inovador projecto de apoio e integração das pessoas mais velhas desta localidade no concelho de Tomar, cujo expoente é o festival Bons Sons, a decorrer até domingo. Terceira de uma série de reportagens sobre estratégias para envelhecer em casa.

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O Bons Sons trouxe mais gente e mais vida à aldeia ribatejana Paulo Pimenta
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Ninguém tem tanta idade em Cem Soldos, aldeia situada a cinco quilómetros da cidade de Tomar. Marildes de Jesus Carvalho conta 95 anos. Esta quinta-feira, pegou na muleta e foi pela rua acima, devagarinho, decidida a ver um concerto. Ficou pouco tempo na praça – encostada à parede, não fosse alguém empurrá-la ainda que sem querer. Entrou na casa de uma filha e sentou-se à janela a apreciar o espectáculo.

Por estes dias, Cem Soldos acolhe uma nova edição do festival de música portuguesa Bons Sons. E Dona Marildes deu o seu contributo, como faz quase toda a gente da aldeia. O Sport Club Operário Cem Soldos (SCOCS) procura não excluir morador algum com vontade de participar, seja qual for a idade.

Quem a via ali, à janela, nem imaginava. Afinal, o contributo dela faz-se em diferido. Ajuda a fazer lagartixas de diversas cores e tamanhos, que a habilidade de Carolina Mourão, de 73 anos, depois transforma em porta-chaves, pregadeiras ou ganchos para vender na loja Bons Sons. São a mascote do festival. Este ano, como o mote é “amor de Verão”, também se entreteve a ajudar a fazer corações.

“Eu gosto muito da minha terra”, diz ela. É uma aldeia ribatejana, com ruas estreitas, casas caiadas de branco, com barras amarelas. “Tem aqui de tudo. Olhe, tem a junta de freguesia, tem a escola, tem o clube, tem o médico. O clube é muito bom para o povo. A gente deixa tudo para ir para o clube!”

Todas as segundas, terças, quartas e quintas, às 14h, juntam-se algumas idosas na oficina Avós & Netos, numa ruazinha estreita, a uns passos da casa de Carolina Mourão. Ela ganhou a vida como cozinheira, mas sempre fez costura, renda, bordado, malha. E a sua perícia é afamada na terra.

Não se põe em bicos de pés, Carolina. “A minha mãe sabia de costura e antigamente tínhamos de fazer o enxoval, os lençóis, as roupinhas para os filhos. Não havia o dinheiro nem a facilidade que há hoje de comprar feito”, explica. Já reformada, inscreveu-se na Universidade Sénior, em Tomar. Começou a pintar. Há meia dúzia de anos, o festival Bons Sons trocou-lhe as voltas. “Tínhamos de fazer as lagartixas. E as senhoras mais de idade começaram a dizer que só iam se eu fosse. Elas obrigaram-me praticamente a ir. A associação agarrou logo. Aquilo dá muito trabalho. Dói as mãos a encher.”

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Já chegaram a ser 14 mulheres. Antes do período de férias, eram seis. Estavam várias hospitalizadas ou acamadas. Carolina nunca sabe com quantas pode contar. “Em Setembro, vamos ver quem é que resiste. Quase todas têm mais de 80 anos.” A mais velha é Marildes, já se sabe. E a mais nova é Lina Cartaxo, de 64 anos. Só que esta última aparece menos. Ainda ajuda a cuidar dos sobrinhos-netos.

Quando Carolina está com as lagartixas, as mais velhas fazem uma parte. “A mobilidade das mãos delas já não ajuda.” Quando não, entretêm-se com a renda, o croché ou a malha delas. Meia hora antes de sair, põe-nas a fazer ginástica. No final do dia, várias vão até à igreja de São Sebastião orar.

Vão à oficina quando querem, mas essa liberdade não faz com que se descuidem. Se uma não vai, as outras entram em estado de alerta. Criou-se uma dinâmica. E isso ajuda-as a passar o tempo, a conviver, mas também as protege e lhes dá um sentido de utilidade, de participação na vida da comunidade.

Uma aldeia que é um lar

Cem Soldos não quer ser só cultura-aldeia. Quer também ser lar-aldeia. Já aqui vieram estudiosos e técnicos experientes falar em estratégias para envelhecer no meio natural de vida.

“É complicado criar uma estrutura para a terceira idade que não seja estigmatizante, como são os lares”, nota Leonor Atalaia, de 26 anos, que estudou gerontologia, dedica-se à massagem terapêutica e é membro da direcção. “O lar-aldeia não é lar no sentido de lar para a terceira idade, mas no sentido de sítio óptimo para viver. O que queremos é criar as condições necessária para que cada pessoa nasça, cresça e morra cá.”

Há cerca de meio ano formou-se um grupo de trabalho. Esse grupo, de que Leonor faz parte, já andou de casa em casa a fazer um levantamento das necessidades socioeconómicas da população mais velha, mas ainda não trabalhou os dados. Quando tiverem o diagnóstico, vão “envolver as pessoas, perceber as suas potencialidades, os seus interesses e, a partir daí, desenvolver novos projectos”.

Para já, há o referido grupo Avós & Netos, que junta as mulheres mais velhas. E o grupo de costura criativa, que junta mulheres mais novas, só uma vez por semana, a fazer sacos, carteiras, porta-moedas e outros adereços que também são vendidos na loja Bons Sons, cuja receita reverte para o trabalho da associação na comunidade. E refeições a preço económico para idosos que já não conseguem cozinhar.

Numa lógica integrada, Leonor aponta as preocupações com a acessibilidade, que não serve apenas pessoas mais velhas, mas todas as que têm mobilidade reduzida. Agora mesmo, no festival, os oito palcos estão dotados de plataformas elevadas individuais ou zonas com boa visibilidade para quem se desloca em cadeira de rodas.

Na mesma linha, o presidente do SCOCS, Jorge Silva, refere a manutenção do posto médico, que se garante com esforço da associação. “É uma resposta insuficiente”, reconhece. “Queremos ter um enfermeiro 24 horas sobre 24 horas. O lar-aldeia vai ter uma central com um enfermeiro.” Ainda não é claro quando e como tal serviço avançará. O financiamento não está resolvido. Parece-lhe evidente que implicará uma comparticipação dos beneficiários. “Isso é que vai sossegar o idoso e a família.”

Leonor Atalaia resume o que ali se passa nestes termos: “No fundo, a aldeia-lar é um conjunto de pequenos projectos. Há serviços que têm de existir, como o apoio domiciliário/comunitário. E temos de incluir estas pessoas na dinâmica da aldeia, mas sempre conforme a possibilidade da pessoa e a sua vontade também.”

Na aldeia moram umas 600 pessoas durante a semana. Parte da vida de quem mora nas aldeias vizinhas faz-se aqui. E Lina Cartaxo é referida como um dos melhores exemplos de envelhecimento integrado.

Lina faz parte do Avós & Netos e do grupo de Costura Criativa e está imparável no festival. Tanto se pode ver a vender merchandising como a vender petiscos. E é uma das estrelas de domingo. Integra o coro da Orquestra Tradicional de Cem Soldos – Cantixas. “Enquanto puder andar, vou andar.”

Para ela, Bons Sons não é apenas sinónimo de festival. “Significa esta aldeia continuar cada vez mais activa, com um convívio cada vez mais intenso. Toda a gente gosta de colaborar. Sinto que esta festa entra em todas as casas da aldeia. Estamos todos ligados. Acaba este, começa-se logo a pensar no próximo.”

Sempre andou por aqui. “Nascida aqui, criada aqui, casei-me e fiquei a viver a dois quilómetros daqui, mas venho todos os dias aqui”, enfatiza a antiga auxiliar de acção educativa. “A minha colaboração com a associação começou mais depois de me reformar, em 2007.” O festival arrancara no ano anterior.

A aldeia parece-lhe mais viva do que nunca. “Antigamente, havia famílias que deixavam cair as casas. Agora, querem arranjá-las! Há gente de fora que quer vir para aqui.” E ela percebe. “O festival é uma chamada muito grande para esta aldeia. Há todo o ano coisas. Há ali a tasca do nosso Joel que tem umas sangrias espectaculares. Quando a gente vem da ginástica ou da costura, a gente vai lá.”

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“Toda a comunidade se esforça”

A escola esteve por um fio. Em 2013/2014 contava 21 alunos e, pelo andar da carruagem, contaria 14 ou 15 no ano lectivo seguinte. A ameaça requeria uma reflexão comunitária. Só havia uma hipótese: ter uma escola tão boa que atraísse gente de aldeias vizinhas. Ouviram estudiosos e professores com experiências inspiradas na filosofia da escola moderna. Aliaram-se o SCOCS, a Associação de Pais e o Agrupamento de Escolas Nuno de Santa Maria para engendrar um projecto educativo alternativo.

Segundo Miguel Atalaia, que na associação responde pela área da educação, o ciclo inverteu-se. Em 2014/2015, arrancou o projecto educativo distinto, com uma turma de pré-escolar e uma turma de primeiro ciclo. Em 2015/2016, passou a haver uma segunda turma de primeiro ciclo. Em 2018/2019, deverá haver uma segunda turma de pré-escolar.

Entre gente que passa para trás e para a frente, procura-se alguém que fale nesta experiência de escola-aldeia na primeira pessoa. E eis Paula Carvalho, 37 anos, mãe de um aluno de seis, a meio caminho entre o trabalho, como enfermeira especializada em saúde mental, e o voluntariado, nos camarins do festival.

Paula destaca as actividades que envolvem a aldeia e os seus habitantes. Ela própria faz sessões de terapia de grupo. Usa psicodrama para ajudar as crianças a lidar com as emoções. Outras mulheres – avós, mães ou tias das crianças – garantem a oficina de culinária “Saberes e sabores”. Há um agricultor já em idade avançada que os orienta na horta pedagógica. Uma vez por ano, durante um par de dias, vão ajudar quem precisa, por exemplo, a limpar um campo ou a apanhar fruta.

“O António está a ter um desenvolvimento muito bom”, diz. “É uma criança calma, concentrada, curiosa.” Faz as aprendizagens essenciais, mas de outra forma. Pode, por exemplo, estudar os números andando pelas ruas a ver os números das portas. “Muitas vezes, vem da escola sujo ou com os joelhos esfolados”, ri-se. Vê desenvolverem-se nele os sentidos de solidariedade e de responsabilidade. Nas últimas semanas, centenas de voluntários encarregaram-se de transformar a aldeia no recinto do festival. E ele também quis ajudar. Pediam-lhe que fosse buscar isto ou aquilo e lá ia ele, contente.

“O festival inclui o trabalho de toda a comunidade e elevou Cem Soldos a nível nacional”, resume Carolina Mourão. “Toda a comunidade se esforça.” Agora, é andar pelo festival a apreciar os concertos. Marildes é que não se mete no meio da confusão. “Já não tenho forças.” Dali, da janela, só consegue ver o que se passa no palco Amália, à frente da igreja. “Já não posso ir aonde quero, mas sou muito estimada.”

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