Exorcista investigado por violação continua a trabalhar

Medidas de coacção impedem homem de 79 anos de se aproximar de queixosa, mas permitem que continue a receber pessoas nas suas casas em Murça e em Fátima. O facto de o tribunal não o ter obrigado a suspender as “consultas” causou perplexidade entre alguns dos que estão ligados ao processo.

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Na pequena localidade de Valinho de Fátima a semana foi relativamente calma. Houve algum corrupio, embora mais causado por jornalistas do que por quem aqui costuma vir à procura de Humberto Gama para afastar os males do espírito.

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Na pequena localidade de Valinho de Fátima a semana foi relativamente calma. Houve algum corrupio, embora mais causado por jornalistas do que por quem aqui costuma vir à procura de Humberto Gama para afastar os males do espírito.

O exorcista de 79 anos que, de acordo com a Polícia Judiciária (PJ), foi “fortemente indiciado pela prática de um crime de violação” na semana passada, continua a exercer a sua actividade e mantém a rotina: atende quem o procura ora na casa de Fátima, ora na das proximidades de Murça, distrito de Vila Real, alternando entre as duas localidades a cada semana. “[Esta semana] estou a trabalhar no Norte, perto de Murça”, diz Humberto Gama ao PÚBLICO, por telefone. O homem que se apresenta como sacerdote, mas que a igreja diz ter sido expulso na década de 1970, conta que não só continua com as “consultas”, como estas aumentaram desde o dia em que foi tornada pública a alegada agressão sexual. “Agora as pessoas estão a telefonar como nunca. Tem sido um fim do mundo, um pandemónio”, descreve, garantindo que lhe continuam a chegar solicitações “de todo o país”, mas também do estrangeiro.

Na segunda-feira regressa ao atendimento em Valinho de Fátima, assegura, e fará uma breve deslocação a Lisboa, por conta de um programa de televisão para o qual diz ter sido convidado. A sua casa cor-de-rosa, localizada à beira da estrada de Minde, e que ostenta um painel com a figura de Cristo, volta assim a abrir as portas. “O condicionamento que me impôs o juiz era para eu não me aproximar [da residência da mulher que apresentou queixa]”, explica. O antigo padre está também impedido de contactar com a alegada vítima e tem de se apresentar duas vezes por semana às autoridades.

No dia 1 de Agosto, Humberto Gama foi detido e constituído arguido por, segundo a PJ, “aproveitando a sua actividade de exorcista e explorando a fragilidade da vítima, especialmente vulnerável, a ter constrangido à prática de actos sexuais de relevo, após a ter colocado na impossibilidade de resistir”. A mulher foi mais tarde conduzida “a um estabelecimento hospitalar, onde lhe foram prestados cuidados de saúde”, lê-se no comunicado das autoridades. O exorcista está também a ser investigado pela prática do crime de burla qualificada.

O facto de entre as medidas de coacção decretadas ao ex-padre pelo juiz de turno do Tribunal de Santarém não estar a suspensão das “consultas exorcistas” causou perplexidade entre algumas fontes ligadas ao processo. O magistrado podia ter invocado o perigo de continuação da actividade criminosa para o fazer.

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O PÚBLICO tentou saber junto deste tribunal os motivos para ter sido permitido ao antigo sacerdote manter as suas actividades, apesar da gravidade das suspeitas que impendem sobre ele, mas sem sucesso. A Procuradoria-Geral da República também não revelou se o representante do Ministério Público neste caso pugnou por este tipo de proibição. Certo é que depois da queixa que deu origem a este inquérito judicial não surgiram mais mulheres a apontar o dedo a Humberto Gama, ao contrário do que as autoridades pensaram que pudesse vir a suceder.

Sem conhecer o caso, a penalista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Inês Ferreira Leite põe duas hipóteses: ou os indícios de prática do crime de violação apresentados ao juiz não eram suficientemente fortes, ou o magistrado pode, pura e simplesmente, não se ter lembrado de proibir temporariamente o ex-padre de exercer esta actividade.

Estivesse o processo numa fase bem mais adiantada e poder-se-ia chegar a uma situação bizarra, exemplifica a jurista. Se Humberto Gama vier a ser julgado e for condenado a uma pena suspensa dificilmente poderá ser proibido pela justiça das consultas de exorcismo: “A aplicação de penas acessórias, como seria o caso, é bem mais restrita que a de medidas de coacção. E o exorcismo não é uma actividade regulada: seria como impedi-lo de falar com Deus.” Coisa diferente seria se os alegados abusos tivessem sido cometidos por um verdadeiro profissional, como um médico ou um professor. Aí, os juízes já poderiam decretar na sentença a suspensão da actividade por determinado período de tempo.

Mas ainda que se entenda que mesmo nesta fase da investigação a lei não permite proibir o suspeito de fazer exorcismos, o juiz de instrução criminal tinha sempre outra opção ao seu dispor para proteger potenciais vítimas, assinala uma procuradora do Ministério Público: impedi-lo, também ao abrigo das disposições do Código de Processo Penal, de frequentar locais onde se pratique o exorcismo. “Seria muito mais eficaz do que proibi-lo de contactar a queixosa, uma vez que com essa ele já não quererá contactar”, observa ainda esta magistrada ouvida pelo PÚBLICO.

Daniel Cotrim, assessor técnico da direcção da Associação da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, explica que não há um princípio fixo de “afastar a pessoa” da função que desempenhava e durante a qual terá praticado o ilícito. Essa medida, refere o psicólogo, tem sempre de “ser avaliada face à gravidade e à possibilidade de a situação voltar ocorrer ou não”.

Em 2011, a diocese de Leiria-Fátima emitiu um comunicado demarcando-se de Gama, referindo que não lhe reconhece “qualquer legitimidade para as actividades religiosas ou de exorcismo que realiza”. Mais: é “abusivo o título de padre com que se apresenta, o usos de vestes sacerdotais e a prática de ritos religiosos”. A nota assinada pelo vigário-geral da diocese, Jorge Guarda, referia também que Humberto Gama “foi efectivamente membro” da congregação dos Marianos da Imaculada Conceição, tendo sido ordenado em Macedo de Cavaleiros em 1965. No entanto, o então padre foi expulso da congregação religiosa em 1972 “por motivos graves”. Versão diferente tem o exorcista, que diz que se afastou voluntariamente. Até hoje, mantém as vestes de padre, envergando habitualmente o cabeção (gola branca) dos sacerdotes: “Eu sou padre, ando vestido de padre e hei-de andar sempre.” Já depois de ter sido detido na semana passada, a diocese republicou este esclarecimento na sua página do Facebook.

Não é também a primeira vez que Humberto Gama se vê a contas com suspeitas de agressão sexual. Foi alvo duas denúncias em 2004 e voltou a sê-lo em 2006. Na altura, perante as alegações, respondia: “São todos malucos.” Agora, o exorcista repete: quem o acusa “é tudo gente maluca”. Resume os casos a um estratagema da Igreja Católica. “Estou lá em Fátima, perto da igreja (que não é a do santuário), e recebo muito mais gente em minha casa do que se calhar a paróquia recebe”, afirma, acrescentando que lhe entram em casa umas “30 a 40 pessoas por dia”. Numa palavra: “Inveja.”

Com advogado oficioso, o arguido diz que a Igreja usa “as pessoas como isco” para o “poderem condenar”. E prossegue: “Isto tudo parece histórias do Júlio Verne. Eles masturbam--se nisso” (sic). “O que me estão a fazer é uma boa propaganda, que eu assim não preciso de pôr nos jornais”, remata. Humberto Gama afirma também que “se não tivesse esta idade” levantava “um processo de difamação” a todos os que dele mal falaram. “Tinham que o provar. Eu já provei a minha inocência, não encontraram nada”, prossegue, numa alusão aos processos anteriores.

Sobre a mais recente acusação, diz que mulher “esteve lá, no máximo, dez minutos, num quarto com porta aberta”. E houve contacto? “Eu tenho que tocar”, porque “é por meio desse contacto físico que se liberta a energia negativa”. Mas diz também que fez o que faz “com toda a gente”. “Pus-lhe a estola nos ombros, mais nada.” Em relação aos indícios de burla qualificada, o exorcista diz não compreender. A PJ refere que se faz “passar por padre”, levando “inúmeras pessoas em dificuldades várias a consultá-lo e auspiciando uma eventual ajuda da sua parte, cobrando honorários”.

O antigo sacerdote garante nunca ter pedido um tostão. “As pessoas dão o que querem. Uns deixam cinco, outros deixam trocos, outros deixam 50.” Não terá sido por essa via que conseguiu reunir uma pequena frota de carros, alguns dos quais estacionados no pátio da vivenda de Valinhos de Fátima. “Estive na América, estive em Londres, fui director de uma Organização Não Governamental internacional em Bruxelas. Tenho o meu pecúlio, trabalhei para isso.” Todavia, admite que gosta “de bons carros”, mas sublinha que isso não é pecado. “Pensam que ter um Porsche é ter um reino dos céus, mas não é. É um meio de transporte igual a outro. É uma questão de gosto e de poder”. com Ana Henriques