Neste tuk-tuk eléctrico contam-se histórias que matam a solidão

Elsa Serra estava “apaixonada pela ideia de poder mudar a vida das pessoas com livros e histórias” e a uma biblioteca itinerante num tuk-tuk eléctrico juntou um projecto de visitas ao domicílio de idosos em Lisboa. À casa de Fernanda Martins, as voluntárias Vera e Sofia levam aulas de pintura.

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O tuk-tuk pára em praças dos bairros e convida todos a sentarem-se e a pegar num livro. DR

Quem passa na Rua do Capelão às sextas-feiras ao final da tarde, mesmo em frente da casa e do Largo da Severa, e entra pelas escadas estreitas e íngremes do número um — um prédio tradicional lisboeta com a bandeira de Portugal hasteada e a roupa no estendal a secar —, encontra Fernanda Martins já em preparação para a aula de pintura. Há já alguns anos que viu a sua mobilidade reduzida a uma cadeira de rodas e ao apartamento do primeiro andar: Fernanda Martins, de 69 anos, sofre de artrite. A aula da qual é a única aluna já se tornou uma rotina e tanto Fernanda como as voluntárias Vera Teixeira e Sofia Andrade já sabem de cor os preparativos para que as pinturas comecem. 

A actividade à qual Fernanda Martins e Ilda Almeida, irmã e cuidadora, abrem a porta todas as semanas faz parte dos projectos Na Rua com Histórias – Uma Biblioteca para todos e Ler Doce Ler. Começou em 2013 pelas mãos de Elsa Serra e surgiu da ideia de criar uma biblioteca itinerante para crianças dos bairros históricos de Lisboa, mas rapidamente se transformou em algo maior. “A vida mostrou-me como as limitações físicas nos podem deixar sós e a biblioteca que seria para crianças transformou-se numa ideia de biblioteca para todos”, conta Elsa Serra. 

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Fernanda Martins e a irmã, Ilda Almeida, abrem as portas de casa a aulas de pintura. Rita Rodrigues

Antes de se entregar a esta aventura, Elsa era contadora de histórias em escolas e bibliotecas e escritora, profissões que a ajudaram a identificar o problema da iliteracia em muitos bairros lisboetas como da Graça, onde também reside, e a construir o projecto que agora é a sua principal ocupação. 

Ao longo de quatro anos, o projecto foi evoluindo, desde formações de empreendedorismo social a contactos com potenciais parceiros que pudessem ajudar Elsa a dar vida ao conceito. Conta Elsa que estava “apaixonada pela ideia de poder mudar a vida das pessoas com livros e histórias” e, em 2016, começou a testar o conceito de visitas ao domicílio para ler um conto, uma revista ou, simplesmente, conversar e fazer companhia a pessoas com carências sociais. Entretanto, não desistiu da ideia da biblioteca itinerante e depois de alguns “nãos” recebeu respostas positivas do Bip/Zip, o programa da Câmara Municipal de Lisboa de apoio a bairros e zonas de intervenção prioritária na cidade, da Fundação Calouste e da Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB).

Um tuk-tuk que também é uma biblioteca itinerante 

Agora já mais crescido, o projecto de Elsa tem duas vertentes. Um tuk-tuk eléctrico e cheio de livros percorre quatro bairros históricos de Lisboa à procura de quem se queira apaixonar por uma história. A biblioteca itinerante funciona com duas rotas nos bairros de Alfama, Castelo, Graça e Mouraria, de segunda a sexta-feira das 10h às 13h30 e das 14h às 17h30.

O conceito é simples: o tuk-tuk pára em locais conhecidos de cada bairro como o Largo da Graça, o Castelo de São Jorge e o Largo da Severa e convida não só moradores como também quem está só de passagem a parar, sentar-se durante algum tempo e ler uma história, um conto ou uma revista. Os visitantes podem escolher levar um livro para casa e devolvê-lo assim que o desejarem à biblioteca. A condução do tuk-tuk está a cargo dos voluntários do projecto, que agora já são mais de 20, com idades entre os 15 e os 40 anos, e que por vezes também lêem histórias para quem as quiser ouvir junto à biblioteca itinerante. Elsa procura nos voluntários "pessoas que gostem de pessoas, simpáticas, tolerantes, empáticas, com grande capacidade de respeitar as diferenças culturais e com capacidade de ouvir”. “E, claro, que gostem de leitura e de fazer a diferença na vida de quem visitam.”

O cenário que é montado em frente à biblioteca é convidativo. À frente do tuk-tuk, preenchido até cima com livros que foram doados ao projecto, é estendido um tapete para que as crianças se possam sentar e são colocadas cadeiras e mesas para que, mais do que ler, as pessoas possam também conviver através da biblioteca itinerante.

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Há ainda as visitas ao domicílio, semelhantes àquelas que as voluntárias Vera e Sofia fazem todas as semanas a casa de Fernanda Martins. Elsa começou sozinha a visitar pessoas, na maioria idosos, sinalizadas por carências sociais pela Câmara Municipal de Lisboa, mas rapidamente se juntaram voluntários que se comprometeram a abraçar o projecto e passar algumas horas a ler ao domicílio, supervisionados por Elsa nas primeiras visitas.

“A Dona Fernanda foi a primeira pessoa com quem tive contacto. Sou professora de Artes Plásticas para a terceira idade e quando a Elsa soube que o sonho da Dona Fernanda era pintar, apesar das dificuldades que tem, juntou-nos às duas e aqui estamos”, conta Sofia. Não foi só a arte que mudou a vida de Fernanda nestes últimos meses. “Para uma pessoa que me diz que está a realizar o seu sonho — ela que tem uma condição particular e diferente dos outros idosos, não pode sair de casa, com dificuldades motoras —, [este projecto permite-lhe] evadir-se um bocadinho através da arte e daquilo que eu e a Vera levamos”, conta Sofia. “A alegria não passa apenas por aprenderem a pintar, mas também por saberem que podem contar connosco.”

A ideia que começou com a leitura ao domicílio depressa se tornou em mais do que simples visitas a casa de quem começa como um estranho e se torna um amigo. “A ideia é irmos adaptando o projecto a cada realidade e podemos fazê-lo através da leitura, música ou pintura, como é o caso da Dona Fernanda”, conta Elsa. 

No futuro, Elsa quer continuar com a biblioteca na rua e rever as suas rotas, continuar e aumentar as visitas ao domicílio e alargar o projecto a outras freguesias. Fala-se ainda numa exposição dos quadros para que toda a gente os possa ver. Para já ainda não há espaço, mas as voluntárias e Elsa prometem não parar até que os quadros estejam todos vendidos e vistos pelo maior número de pessoas possível.

Texto editado por Ana Maria Henriques

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