Bilbau, arquitectura e gula na cidade-laboratório

Desde que Bilbau vestiu o seu primeiro Chanel – a capa dourada do Museu Guggenheim –, para poder andar entre a elite, que não havia um projecto com tanto impacto na “cidade dos arquitectos”. Mas, desta vez, mais do que turistas, os bilbaínos querem ver chegar empresários e investigadores.

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Uma mulher de meia idade atravessa a ponte Frank Gehry para ir ter com o filho à península de Zorrotzaurre. Parece orgulhosa por ter um descendente a morar no bairro, mesmo que nele não se veja mais do que um aglomerado de prédios semidecrépitos, para lá de um troço de taipais, terra e brita, com retroescavadoras e homens de fato amarelo. A mulher, de rugas como se vivesse à beira-mar, olha para aquela massa castanha e diz: “Tudo isto vai ser água. Uma zona de luxo.”

Atravessada a ponte, Javi lê o El Correo de 30 de Abril no café: “Hoteles flotantes, transportes acuáticos y otras cosas que poner en la ría de Bilbao” (“Hotéis flutuantes, transportes aquáticos e outras coisas a pôr na ria de Bilbau”). A câmara encomendou um estudo sobre as actividades que poderão ocupar a ria, que já é atravessada por pequenas embarcações e remadores com genica, de um lado para o outro. O estudo custou 300 mil euros; a transformação da península de Zorrotzaurre e da Ribera de Deusto na ilha imaginada pela arquitecta Zaha Hadid ultrapassa os 1400 milhões de euros; e só a pequena ponte Frank Gehry, inaugurada em 2015, custou mais de 5,5 milhões de euros, mas “abre caminho até ao futuro de Bilbau”, segundo o poder local. Está em curso a segunda grande reconfiguração da capital de Biscaia, depois do plano urbanístico de 1995, que de repente a colocou no mapa-mundo com o selo Guggenheim.

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No final dos anos 1990, uma cidade que nunca tinha sido explorada por turistas rapidamente viu chegar ao seu novo museu de arte contemporânea cerca de um milhão de visitantes por ano. Foi o “efeito Guggenheim”, como lhe chamou o jornalista e filósofo Iñaki Esteban. Com o ritmo – e o novo status –, multiplicaram-se os cafés, as galerias, construíram-se edifícios icónicos e criou-se a cidade dos cinco prémios Pritzker, desde o canadiano Frank Gehry, o homem das curvas do Guggenheim, ao português Álvaro Siza Vieira, que desenhou um dos edifícios da Universidade del País Vasco com um terraço sobre as águas do Nervión, numa margem que antes da “revolução” exibia pouco mais do que contentores (não fosse esta a cidade que detém o maior porto basco). Tudo isto, brilhante e glamouroso, era, ainda assim, sobrevoado pela nuvem do terrorismo praticado pela ETA e pelo medo de morrer. A insegurança foi tema de décadas e Bilbau queria desfazer-se dessa imagem perante o mundo. Se em 2011 a organização terrorista (responsável pela morte de 854 pessoas) anunciou o cessar-fogo, a 5 de Maio deste ano apresentou a sua dissolução. E Bilbau continua.

Mas “a transformação de Bilbau não foi feita pelo Guggenheim”, gosta de argumentar Asier Abaunza, o equivalente ao vereador do urbanismo na autarquia bilbaína, 21 anos depois da abertura do icónico museu ao público. “Houve cidades que erraram ao pensar que, apostando numa grande infraestrutura cultural, o resto viria por arrasto. Não é assim. O Guggenheim era necessário para pôr Bilbau no mapa internacional, num momento em que as nossas fábricas estavam a fechar e os bancos estavam numa situação crítica. Mas investimos oito vezes mais no resto do que a construí-lo. Só mil milhões de euros foram para limpar a ria. É claro que ninguém nos viria visitar só porque a limpámos, mas, se a mantivéssemos contaminada, ninguém vinha na mesma”, enquadra o autarca.

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Manu Gómez-Álvarez, presidente da Haceria Arteak Rute Barbedo

O “efeito Guggenheim” tem sido estudado sob várias perspectivas e Bilbau passou a ser considerada um laboratório de urbanismo. Os 345 mil habitantes e muitos turistas (longe de serem demasiados) voam na linha de metro projectada por Norman Foster (o mesmo que desenhou o aeroporto de Hong Kong e a londrina Millennium Bridge), chegam à clássica estação de Abando (outra zona que será renovada) em comboios suburbanos, circulam por mais de 15 pontes e aceleram nos skates, bicicletas, trotinetes, patins e sapatilhas. Falta, ainda, mencionar o aeroporto, de onde se chega ao centro da cidade em 15 minutos, e o comboio de alta velocidade, com estreia prevista para 2023. A apatia não serve a Bilbau, e a vontade de que a vida funcione pode estar relacionada com a afirmação basca. “Há um sentimento de identidade que nos faz querer competir, em grande parte do ponto de vista económico. Por outro lado, estamos num momento em que há uma grande concorrência entre as cidades europeias e mesmo mundiais, e se queremos destacar-nos temos de nos especializar”, afirma Abaunza, nacionalista basco.

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Mientras tanto

O certo é que, em Outubro de 1997, enquanto “meio mundo assistia ao nascimento de Bilbau como cidade de alto standing, como centro de turismo, ponto de atracção mediática e tema de conversação global” (como descreveu Iñaki Esteban), a península artificial de Zorrotzaurre mantinha-se à sombra. Foi a associação cultural Hacería Arteak, criada nesse ano, que tomou conta da vida do bairro, abrindo ateliês, criando projectos comunitários e ferramentas para que se pudesse fazer arte. “Com as alterações dos últimos anos, decidimos criar o projecto ZAWP [Zorrotzaurre Art Work in Progress] para afrontar, com a cultura, este período de transição”, conta Tania Díez María, responsável de comunicação.

“As pessoas pensam no produto final da transformação [de uma cidade] e nós pensamos no processo de transformação como um gerador de oportunidades. Há aqui edifícios industriais vazios, porque a empresa fechou ou porque mudou de instalações, e nós damos vida a esses espaços. Chamamos ao conceito de Mientras Tanto [Entretanto]”, explica. Ilustrado, é mais ou menos isto: “Quando éramos miúdos e havia uma obra ao pé de casa, era uma oportunidade perfeita para construir uma casa de brincar. Aqui é a mesma coisa: é a oportunidade perfeita para dispor de um espaço que permite experimentar.”

Mientras tanto, Zorrotzaurre tornou-se numa pequena Meca da cultura de Bilbau, com noites de jazz, flamenco ou teatro, oficinas para crianças e adultos, mercados, conferências e exposições, e até problemas de estacionamento. O projecto tem atraído a atenção de criativos e gestores de vários países, colocando, mais uma vez, Bilbau no posto de laboratório. “Vêm comitivas internacionais para perceber como fizemos isto e replicar noutras realidades”, confirma Tania.

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Não é que a península tivesse morrido depois de anos como enclave de fábricas e de restaurantes apinhados de operários à hora de almoço, como descreve Constan, antiga trabalhadora na Ribera de Deusto, no tempo em que se faziam filas para atravessar a ria de barco. “Imaginem passar isto de bote no Inverno…” No princípio dos anos 2000, o movimento okupa também ganhou força por estas bandas. “Eram espaços enormes, onde se podia ensaiar, onde os escultores tinham os seus ateliês… Foi uma época muito criativa. Mas às vezes os donos não estavam de acordo e a história acabava na rua”, contou o artista Santi SOS para a câmara de filmar da ZAWP, que está a documentar o passado desta antiga zona fabril através de “entrevistas a moradores, vídeos, fotografias”, resume Tania.

“Há uma grande filosofia de associativismo na cidade. E também existem muitos grupos de base política, quanto mais não seja pelo nosso passado”, enquadra a activista, para descrever as pessoas de Bilbau e a vontade que têm de ser a cidade, mais do que de serem absorvidos por ela. “Do ponto de vista cultural, também há muita vontade de criar, e até falta de espaços para isso”, avança Tania. Na zona multicultural de Bilbao La Vieja, com um passado que começa na exploração mineira (de ferro) e desemboca em histórias de prostituição, imigração, pobreza e lavadeiras, o fim de tarde acende as luzes sobre os novos murais de arte urbana e abre as portas a bares de mezcal e a vernissages em galerias de arte, junto a hostels, ateliês de arquitectura, estrangeiros que entram para os seus Airbnb e mercearias com feijão seco e conservas de anchova. “É claro que associado a tudo isto vêm as questões da gentrificação”, remata Tania. Não há medalha sem reverso.

O equilíbrio dos pintxos

Dos murais de La Vieja até ao Casco Viejo (zona velha) vislumbram-se os cigarros enrolados e as cervejas artesanais do Bar Nervión, na Rua Dós de Mayo, que no primeiro sábado de cada mês se transforma num mercado a céu aberto de roupa, discos, livros em segunda mão, artesanato, desenhos, postais e também objectos sem utilidade aparente. Pedala-se sobre a ponte e vira-se para o Mercado de La Ribera, onde se farejam enchidos e se bebe Alvariño e Verdejo com pintxos (petiscos variados com o pão como base) de tortilla, presunto, espetadas de carne, croquetas, azeitonas, queijos, arrozes, mariscos.

No paraíso das línguas (excluindo estrelas Michelin) do Casco Viejo, está tudo a transbordar, das montras de comida às filas de comedores. Bacalhau da Islândia, vitela estufada, chouriço assado, cogumelos com cebola caramelizada, canivetes, gambas, atum com molho de framboesa, tortilha, anchovas, bocas grandes, pequenas, com fome, com gula, com dentes grandes, bigodes sujos, húmidas de cerveja, de vinho, de água com gás. Um grupo de alemães vê a indecisão na boca de uma rapariga ao lado e ela já está a comer ternera do garfo estrangeiro. “O leitão é o meu preferido”, diz o funcionário. E aí vem um prato dele, com molho, estaladiço, crocante. Durante minutos, não há diálogo senão entre os botões gustativos, todos a piscar, e aquele pedaço de carne pecaminoso e suculento. Adiante, vem o polvo assado e ainda há-de aparecer o presunto do Claudio, “el jamón con nombre proprio”, a puxar para um inevitável bocadillo do dito fumado, cortado à faca, com tomate, numa cama de baguete morna, estaladiça. “O presunto bom não tem de ser caro”, defende a família que começou o negócio em 1948. E ainda faltam os bolos, regados a inspiração francesa, cremes de açúcar, chocolate. Mãos estendidas a pedir bocadillos, mais pintxos, mais pratos fundos de ternera, para pagar, pedir cervejas, cumprimentar o Jordi, o Antonio, o Eliseu, a Carmen, pedir a conta. Isto está sempre assim? “É sexta-feira. Há que comemorar”, responde Manuel, ao balcão do histórico Café Bar Bilbao, na Plaza Nueva, onde os miúdos brincam à chuva num grande quadrado de pedra, os pais bebem cañas abrigados nos claustros e os irmãos mais velho fumam porros.

Manuel, na casa dos 50, de bigode farto a ondular ao ritmo do castelhano que preferia não ter de usar, até pode ter razão. Mas o sábado também é festa, o domingo não fica atrás e a quinta-feira é a orgia do pintxo pote (com pintxos e cerveja a um euro, tudo fica na rua até de madrugada), na Somera Kalega ou no bairro La Vieja.

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Os bilbaínos estão sempre em festa, ó Manuel. “Não, não. Nada disso. Somos gente muito séria. Olhe à sua volta.” Pilhas de presunto, pirâmides de calamares, quatro funcionários a dominar o tecto de copos como pianistas treinados. Gente à espera de mesa, “una sidra”, “dós cervezas”, “una sangria grande, por favor”. Mas Manuel insiste no exercício de argumentação que parece ter como único fim demarcar-se da ‘movida madrilena’. “Não somos nada festeiros, como noutras regiões de Espanha. Somos pessoas de princípios, gente de montanha, habituada a este tempo chato, cinzento, com esta chuvinha sempre a cair… E trabalhamos muito. Originalmente, éramos um povo que vivia espalhado pelos montes, cada um com a sua terra. Por isso, habituámo-nos a fazer acordos e a cumprir a nossa palavra. Ao contrário dos andaluzes, em quem não se pode mesmo confiar. É impressionante”, indigna-se o basco.

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Mas, Manuel, vamos lá, por que está a dizer tudo isso? Olha para um lado, depois para o outro, e baixa a cabeça para baixar também o tom de voz: “Nosotros somos independentistas”, sussurra, como se tivesse acabado de desvendar um grande segredo.

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