Regresso ao passado e ao futuro com Rafael Toral

Esta sexta-feira, Rafael Toral revisita Wave Field no Museu do Chiado, em Lisboa, meses depois da reedição pela Drag City de dois álbuns fundamentais para repensar a guitarra nos anos 90. A esse olhar para trás, junta um capítulo impelido para a frente, com o primeiro álbum do seu Space Quartet.

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Nuno Martins

Reza a lenda que terá sido ao ouvir os Buzzcocks, na primeira parte do único concerto dos Nirvana em Portugal – Cascais, Fevereiro de 1994 –, que Rafael Toral ouviu mais do que a simples deficiência acústica da sala, encontrando nessa massa de som pouco clara “um som eléctrico-flutuante” que teve o impacto de uma epifania. Foi com essa referência arquivada na cabeça que o músico gravou, pouco depois e numa só tarde, Wave Field. Se o registo aconteceu num curtíssimo espaço de tempo, as misturas espraiaram-se durante quase um ano, numa tentativa de encontrar correspondência para a qualidade abstracta do som que tinha idealizado para a sua guitarra.

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Rafael Toral admite que sempre carregou consigo a obsessão de “dotar a música de resistência ao tempo” e permitir que as suas criações não envelhecessem flácidas e de face marcada pelas rugas vera marmelo

“Queria fazer uma peça ambiental que soasse como um milhar de concertos rock a reverberar numa sala distante”, descreveu anos mais tarde à New York Press. Embora lançado pela modesta Moneyland Records, em 1995, Wave Field, a par do anterior Sound Body Sound Mind, fizeram o seu caminho até chegar às mãos e aos ouvidos de gente como Lee Ranaldo  (que lhes teceu entusiásticas loas) e Jim O’Rourke (que os reeditou na sua própria etiqueta, a Moikai, passados alguns anos). Mesmo à distância, e de forma remota, a exploração sónica desenhada por Rafael Toral tornava-se de audição obrigatória para uma comunidade atenta aos caminhos mais tortuosos e expansivos que podiam ser sugeridos e tomados por quem não pensava a guitarra como um instrumento manietado por uma linguagem rock.

Agora, depois de a norte-americana Drag City ter apostado nas edições em vinil de Movimento Perpétuo e Guitarra Portuguesa, de Carlos Paredes, atirando a obra do genial músico que desenvolvia peças de uma beleza aracnídea (o preciosismo, a beleza e o sentido de construção de uma teia em que caímos com um desmedido encanto), a editora que publica gente como Bonnie “Prince” Billy, Joanna Newsom, Smog ou Ty Segall vira-se de novo para o rectângulo português e aplica o mesmo tratamento a Rafael Toral.

Para o músico, que esta sexta-feira reinterpreta Wave Field no Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, em Lisboa (no âmbito das Noites de Verão programadas pela Filho Único), este olhar dirigido ao passado trouxe a satisfação de “ver como [os dois álbuns] se mantêm de pé ao fim de tantos anos e como se relacionam com o que se foi fazendo e com o que se faz agora”, diz ao Ípsilon. “Realmente, é tanto uma viagem ao passado e ao revisitar de 1994/95, quanto uma viagem ao futuro desse tempo, como se nos viessem visitar aqui e hoje, e assumir uma presença. É uma felicidade enorme para mim ver como se sentem à vontade em 2018. Surpreende-me ter sido eu a servir de veículo para a criação destas coisas, [mas] estou feliz por ter conseguido dar-lhes existência para estarem aí, agora, inteiros e de saúde.”

Rafael Toral admite que sempre carregou consigo a obsessão, em especial no início da sua carreira discográfica, de “dotar a música de resistência ao tempo” e permitir que as suas criações não envelhecessem flácidas e de face marcada pelas rugas. Ou seja, que o tempo não se tornasse um peso a pender sobre as suas propostas, tornando-as algo turvo e produto de um período, sem capacidade de estabelecer ligações efectivas para além desse momento concreto. Daí que o tempo de gestação de cada disco fosse distendido, evitando sempre ceder ao impulso e ao entusiasmo momentâneo com dada obra, preferindo, muitas vezes, “reter discos por um ano depois de prontos para os testar nesse aspecto”. “E também queria que fossem válidos num espaço alargado, que pudessem ser apreciados tanto em Lisboa como em Tóquio ou Berlim.”

Wave Field era, segundo Toral, “música ambiental que tem dentes reais”, ou música rock “tornada líquida, uma essência flutuante”. Essa era a forma que tomava a interacção física do instrumento com o corpo. “Um trompete em cima duma mesa não faz som”, responde. “Não tem botão de play nem loop nem start, não é automático nem autónomo. Vejo o instrumento como natural extensão do corpo, uma ferramenta como um berbequim ou um martelo.” Mas era também a concretização da música abstracta que queria expressar e que levava na cabeça. A ligação com o idioma e a história da guitarra enquanto elemento preponderante estava presente, mas parecia sobretudo ser abordada a partir de uma lógica de implosão – em que as progressões de acordes ou melódicas desapareciam em favor de uma narrativa que não mantinha dívidas para com a linearidade, em que a visceralidade era trocada por uma linguagem esparsa e etérea.

Mesma ideia, direcções opostas

Já em 1994, por alturas da edição de Sound Mind Sound Body, Rafael Toral reconhece que se fazia notar o “impacto muito profundo” no seu pensamento musical do contacto com a obra de John Cage. Esse ascendente acompanhou a sua produção até 2004, altura em que lançou o seu Space Program – um longo ciclo de abordagem à música electrónica em que o foco incide sobre as decisões pessoais e em que aquilo que é tocado transcende a importância do instrumento usado para as peças.

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Nuno Martins

Foi um período em que Toral adoptou igualmente um sistema que “reflecte preocupações com o espaço (ou seja, o silêncio) e com a criação de estruturas que nascem da articulação do discurso de cada músico”. E foi colhendo junto de Sei Miguel, graças à sua participação regular nas formações do trompetista, a naturalidade de tocar respeitando estruturas assíncronas, “em que as partes dos músicos ‘flutuavam’ como camadas umas sobre as outras”. Todos esses elementos, acrescidos dos efeitos de ensinamentos próximos do budismo e relacionados com uma prática de meditação, estiveram presentes no Space Collective – formação que agora desagua, num outro patamar, com a mais recente edição do músico, à frente do Space Quartet.

O álbum homónimo do Space Quartet é precisamente o mais recente lançamento de Rafael Toral – completando a tal viagem até ao futuro. Partindo da formação clássica do quarteto de jazz, Toral mantém a secção rítmica (composta pela bateria de João Filipe e pelo contrabaixo de Hugo Antunes) mas troca a presença dos sopros pelo duo de electrónica formado por si e por Ricardo Webbens. É uma mudança de peças em que a electrónica reclama o papel dos instrumentos de sopros e afirma a sua predisposição solística, apresentando-se dentro do figurino do jazz mas torcendo-lhe as voltas o suficiente para parecer jogar – em simultâneo – dentro e fora desse universo.

“O fraseado melódico no jazz sempre esteve principalmente veiculado pelos sopros, já temos o ouvido formatado nesse sentido por décadas de história, de pré-Charlie Parker a pós-Evan Parker”, contextualiza. “Coloquei a electrónica nesse eixo central, tipicamente ocupado pelos sopros, a dar corpo ao fluxo discursivo que se impele para a frente. É uma abordagem à electrónica diferente da maior parte da história da electrónica no jazz – em que este é aqui o ponto de chegada, e é a electrónica o ponto de partida.” Num certo sentido, pode até dizer-se que há um pensamento semelhante por detrás de Wave Field e Space Quartet, embora desenvolvido em direcções opostas – se antes era a abstracção a impor-se ao vocabulário muito concreto de um instrumento como a guitarra, agora é a habitual abstracção associada à electrónica a reclamar a sua liberdade ao adoptar um código jazzístico.

Sobretudo ao escutar-se o tema de abertura, Lisboa pt. 1, é impossível não reconhecer a matriz de saxofones e trompetes nos monólogos e nos diálogos com que Rafael Toral e Ricardo Webbens preenchem os espaços. E mesmo a secção rítmica comporta-se como se estivesse rodeada e a responder aos discípulos mais ou menos longínquos de Parker & Parker (para seguir o mapeamento proposto por Toral, do antes de Charlie ao depois de Evan). Há em tudo isto, portanto, um pensamento musical libertador, em que Toral se propõe abordar os instrumentos a partir de uma subversão da sua história e da sua tradição, reordenando as peças de acordo com uma fricção incessante entre sonoridades familiares e ambientes que pouco frequentam.

Daí que quando fala numa exploração musical modelada pelo jazz  e que encontra nesta formação “um meio natural, que existe aqui como peixe na água”, tenhamos sempre de estar conscientes de que estes são peixes que nadam contra a corrente e que desaguam onde menos se espera. Ou que apenas distorcem um cenário para que percebamos, afinal, quanto estamos domesticados por anos de repetição dos mesmos códigos aplicados aos mesmos instrumentos.

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