Os factos de uma história que se conta por aí

Esta história é sobre um juiz desembargador do Porto que se passeava num carro sem matrículas e fugiu à polícia.

A possibilidade de construir verdades com opiniões sobre coisas que não se conhecem é um luxo que não está ao alcance de todos. Mas, infelizmente, há histórias tão bem contadas que os factos nunca mais desmentem.

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A possibilidade de construir verdades com opiniões sobre coisas que não se conhecem é um luxo que não está ao alcance de todos. Mas, infelizmente, há histórias tão bem contadas que os factos nunca mais desmentem.

Esta história é sobre um juiz desembargador do Porto que se passeava num carro sem matrículas e fugiu à polícia. Foi apanhado e tentou safar-se com o cartão de juiz mas não deu. Por vingança, pôs um processo contra os polícias. Na primeira instância foram absolvidos e fez-se justiça. Só que, numa reviravolta suspeita, o recurso foi parar às mãos de um amigo e os polícias foram condenados a indemnizar o desembargador do Porto.

Fiquei intrigado e fui investigar. Para uma pessoa razoável e de boa-fé, os factos apurados no tribunal são a reconstituição mais aproximada que se pode ter da verdade histórica. Certamente mais fiável do que relatos dos interessados a “puxar a brasa à sua sardinha”. Como desconfiava, as coisas não foram bem assim.

Em 2012, o desembargador do Porto conduzia o carro sem chapas de matrícula, que tinham sido furtadas, e dirigia-se para a oficina, com uma declaração da PSP a certificar que tinha apresentado queixa. A GNR fazia uma operação stop do outro lado da rotunda, deu-lhe ordem de paragem, mas ele não se apercebeu e prosseguiu. Umas centenas de metros mais à frente viu a GNR atrás de si e parou. A acção subsequente demorou quase uma hora, com alguma crispação de parte a parte. Quase no fim, quando a GNR ia passar o serviço à PSP, para apreender o carro, o juiz desembargador exibiu o seu cartão profissional e pediu a identificação dos polícias todos.

No dia seguinte, o militar mais graduado da GNR denunciou o juiz ao Conselho Superior da Magistratura, por desobediência intencional à ordem de paragem e fuga. No inquérito disciplinar, todos os elementos da patrulha confirmaram a denúncia, sob juramento. O inquérito foi arquivado. O desembargador do Porto apresentou queixa-crime contra os militares da GNR, por denúncia caluniosa e falsidade de testemunho e pediu uma indemnização. Em primeira instância, por dúvidas sobre a intencionalidade, os militares da GNR foram absolvidos. Houve recurso e os juízes da Relação de Lisboa analisaram as provas e concluíram que os militares tinham mentido intencionalmente, quer na denúncia, quer nos depoimentos. Por isso, foram condenados em penas de multa pelos crimes e em indemnização.

O acórdão da Relação de Lisboa foi decidido por dois juízes desembargadores. É verdade que um deles, o que relatou a decisão, tinha sido colega de trabalho do desembargador do Porto há quase dez anos. Como é verdade, também, que, noutro processo, relacionado com os mesmos acontecimentos, não lhe deu razão na queixa que ele tinha apresentado contra o agente da PSP que apreendeu o carro.

Agora o fact checking é mais fácil. E quem tiver dúvidas pode ler o acórdão em www.asjp.pt. O juiz circulava sem matrícula por alguma razão esquisita? Não. O juiz desobedeceu e fugiu à polícia? Não. Os militares da GNR apresentaram uma denúncia falsa e mentiram sob juramento, para que o juiz fosse punido disciplinarmente? Sim. O juiz da Relação de Lisboa tinha sido colega de trabalho do juiz queixoso? Sim. Neste caso, deu-lhe razão? Sim (em conjunto com outro juiz). Num caso anterior, que resultou dos mesmos acontecimentos, também lhe tinha dado razão? Não (em conjunto com outra juíza). Este caso tem alguma coisa a ver com o caso do acórdão muito comentado sobre violência doméstica, do mesmo juiz? Nada.

Falta a minha declaração de interesses. Não conheço o juiz desembargador do Porto. Trabalhamos no mesmo tribunal mas em secções diferentes. Trocámos palavras de circunstância no máximo meia dúzia de vezes. O desembargador de Lisboa, julgo que nem o conheço. Contactei-o para ter acesso ao acórdão e nada mais. Do outro caso que referi tive conhecimento também pela decisão a que tive acesso.

Acredito nas virtudes de um sistema em que é absolutamente legítimo e saudável criticar as decisões e procedimentos dos juízes. Mas prefiro que os críticos leiam primeiro as decisões que criticam. Concedo, no entanto, que para isso é urgente criar um mecanismo de divulgação imediata das decisões que suscitem o interesse público.