Espirais

As vozes da desgraça não são inocentes: há quem sempre tenha lidado mal com um Ensino Superior massificado.

Por volta de 2004, após o primeiro pico do número de estudantes matriculados no Ensino Superior público, começaram a ser recorrentes as notícias sobre a queda do número de candidatos.

É verdade que já anteriormente tinham surgido ligeiras flutuações negativas no número de inscritos pela 1.ª vez. Mas como se pode ver pelo gráfico, a evolução do número de alunos tem avançado num sentido positivo.

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Já nesse passado (1999, 2004 e 2005, 2012 a 2015) ouviram-se vozes que clamavam existir Ensino Superior público a mais. Esse discurso tornou-se repetitivo com o avançar do milénio, sobretudo quando o número de nados-vivos começou a dar os primeiros sinais de quebra (a partir de 2005). Do alarme rapidamente se passou a questionar o dimensionamento da rede, a sua dispersão, ou mesmo o seu financiamento.

A realidade dos números demonstra que hoje temos mais 42% de alunos no Ensino Superior público do que nos “gloriosos anos 90”. Se olharmos para a base demográfica (18 anos antes), o número de nados vivos em 2017 é 28% menor do que em 1997. Contudo, apesar de uma base demográfica 28% menor, temos um público 42% maior.

Antes de se olhar para a quebra do número de candidatos deste ano e entrar em histeria (num ano que remonta até a um pico demográfico, como foi 2000), convém perceber vários fatores, como o abandono escolar no básico e secundário, ou o não prosseguimento de estudos. Basta um problema num exame para termos consequências em cascata.

As vozes da desgraça não são inocentes. Há quem sempre tenha lidado mal com um Ensino Superior massificado, não compreendendo que se trata de uma competição à escala global, em que apresentamos debilidades enormes à partida (quando se fala do crescimento dos países de Leste é bom que se olhe para as taxas de qualificação).

Já nos anos 60 e 70 houve quem rejeitasse o Programa Regional do Mediterrâneo e o IV Plano de Fomento, sobretudo pela aposta em sistemas regionais de inovação e qualificação fora dos grandes centros urbanos (muito antes do primeiro destes termos se tornar conhecido).

São também aqueles que nunca aceitaram que o Ensino Superior se democratizasse, demonstrando atualmente uma resistência extrema à democratização das próprias instituições.

Dado que muitos destes agentes são herdeiros e beneficiários do sistema anterior, o seu discurso não pode ser analisado de forma acrítica, ou tomado de forma simplista e inocente.

Deveremos ter mais flutuações (como demonstram os dados), mas antes de entrarmos em futurologia simplista, convém ter em atenção os tais outros fatores que influenciam o número de candidatos e que vão além da demografia.

Sermos mais sérios nos debates e nas propostas para a economia e para o país (sobretudo do seu interior) implica reconhecermos fragilidades globais de um modelo baseado em produtos “tradicionais”, ligado a uma baixa produtividade estrutural (quando temos uma economia débil não se pode fazer apenas mais do mesmo).

No gráfico apresento também a evolução do financiamento do Ensino Superior, que demonstra a quebra em mais de 30%, apesar do crescimento no número de alunos. As mesmas vozes que defenderam uma poda acharam bem a essa quebra (era sinal de “eficácia”). Na verdade, atrasou-nos ainda mais, implicando uma espiral de desvalorização.

Se continuarmos a apostar na depreciação do Ensino Superior (sinalizada na própria condição laboral de quem o produz), então não se esperem grandes milagres. Os nossos níveis de qualificação poderão vir a reorientar-se para baixo, com todas as consequências que daí advêm.

Se nos deixarem construir instituições capazes de introduzir espirais positivas, aí sim, ganharemos o desafio do futuro.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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