O juiz e a matrícula

Um juiz a quem foram furtadas as matrículas do carro foi mandado parar pela GNR tem alimentado uma novela na imprensa e na vida sindical dos juízes.

Um juiz a quem foram furtadas as matrículas do carro foi mandado parar pela GNR precisamente naquela situação de decaimento administrativo e isso, porque o juiz desmatriculado e quatro agentes em busca delas se desentenderam algures em Loures, tem alimentado uma novela na imprensa e na vida sindical dos juízes, depois de ter alimentado uma novela judicial.

Claro que o facto do juiz “quase sexagenário” em causa ter dito que seria da sua experiência que geralmente os polícias mentem em tribunal e nos documentos que produzem não ajudou. Como não sou juiz, não faço ideia, felizmente, se isto é verdade ou não. Admito que tenha importância sabê-lo. Admito até que possa ser a única coisa importante a retirar deste processo. Mas não é efectivamente sobre isso a demanda e ninguém parece muito preocupado com isso, a começar pelo juiz que esperou para ser desembargador, viajar sem matrículas e entrar em crise com a autoridade policial para se lembrar que afinal era um dado da experiência comum que os polícias “geralmente” mentem em tribunal e nos documentos oficiais.

Nunca na sua vida anterior tal provavelmente o tinha chocado tanto como naquela fatídica rotunda de Loures, quando foi incomodado pela brigada, apenas porque tal nunca antes fora por si percebido com tanta clarividência.

Merece bem, portanto, choruda indemnização cível, não só porque foi eventualmente enxovalhado – para além do já certo e magno vexame que um passeio sem as duas matrículas lhe causava interiormente – como se tornou só então claro para si, com grave e notório dano, que boa parte da sua vida decorrera a ouvir e ler mentiras de polícias e até provavelmente a condenar outros com base nelas.

O último acórdão sobre esta complexa questão da indemnização cível pedida pelo juiz aos polícias usa não menos de 70 páginas sobre tão alta problemática, que dura, note-se, desde 2012. Confesso que aqui o que também me choca desde logo é a extensa cobertura com que a justiça trata o problema. Depois, também me coloca sérias dúvidas, para não dizer que assusta, lendo o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que a Associação Sindical dos Juízes Portugueses colocou no seu website, uma passagem mais obscura em que o mesmo juiz, enquanto assistente no processo, afirma que Entre o juízo de probabilidade (próprio da fase de instrução) e o juízo de certeza (da fase de julgamento) não existe uma diferença essencial, pois a decisão do juiz que pronuncia, porque se constitui como um pre-juízo fundado na mesma teleologia, há-de basear-se já num juízo muito próximo do que preside à decisão do juiz que julga”.

Pode parecer quase neutro e evidente o que se diz aqui, eventualmente por defeito, mas sejamos um pouco mais exigentes. Ora se entre um juízo de probabilidade e um juízo de certeza não houver “diferença essencial” - seguramente mais um piscar de olho nada envergonhado ao aristotelismo e até à sua releitura patrística que o mesmo juiz já demonstrou conhecer em abundância na sua fundamentação de sentença sobre adultério e mulheres adúlteras –, talvez possamos prescindir de boa parte do processo penal, e até de muitos dos juízes e dos procuradores e dos advogados, já para não falar dos professores de direito, esses seres menores, e seguramente de acórdãos de 70 páginas, porque afinal basta uma rápida decisão instrutória, tantas vezes sem testemunhos ou apreciação de qualquer prova, para antecipar a verdade.

Com ou sem matrículas, isto está bonito, está.

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