“Jean Rouch foi, antes de tudo, um grande investigador etnográfico”

Bernard Surugue, da Fundação Jean Rouch, diz que há ainda muito a descobrir e a investigar no espólio do cineasta e cientista francês.

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Jean Rouch em 1995 Arquivo PÚBLICO

Ao contrário do que tem sido habitual, em que a rubrica Fora de Campo elege um tema, o festival de Melgaço homenageou este ano uma figura singular na história do cinema (e não só) – Jean Rouch (1917-2004), cujo centenário do nascimento se está a comemorar.

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Ao contrário do que tem sido habitual, em que a rubrica Fora de Campo elege um tema, o festival de Melgaço homenageou este ano uma figura singular na história do cinema (e não só) – Jean Rouch (1917-2004), cujo centenário do nascimento se está a comemorar.

Sob a curadoria de José da Silva Ribeiro (professor na Universidade de Goiás, no Brasil), foi exibida uma selecção de filmes que incluiu a sua obra referencial Chronique d’Un Été (1961) e o filme afectivo que co-realizou com Manoel de Oliveira, En Une Poignée de Mains Amies (1996). Mas o festival acolheu também a sua viúva e presidente da Fundação Jean Rouch, Jocelyne Rouch, e um dos directores da instituição e companheiro de tantas aventuras do cineasta-etnógrafo, Bernard Surugue, que testemunharam em Melgaço aspectos da sua vida e obra.

“Jean Rouch foi, antes de tudo, um grande investigador etnográfico”, disse Surugue ao PÚBLICO, recentrando de algum modo a importância de alguém cuja notoriedade nos chega normalmente mais pelo cinema, pela mais de uma centena de filmes que realizou em mais de meio século, e também pelo seu papel pioneiro no movimento do cinema directo na Europa. Entre os documentários que Rouch fez na segunda metade da década de 40, aquando da sua primeira aventura em África, no curso do rio Níger, até à longa-metragem que assinou com Surugue em 2002, Le Rêve Plus Fort Que la Mort.

Bernard Surugue conheceu Rouch precisamente no Níger, quando, em meados da década de 60, ensinava música num liceu da capital, Niamey. Como a música era um elemento indispensável às investigações de campo do etnógrafo, este desafiou-o a trabalhar consigo. Foi uma relação que durou até à morte de Rouch, em 2004.

A viagem pioneira que Jean Rouch fez, com os seus amigos Jean Sauvy e Pierre Ponty, em 1946, no curso do Níger, em que os seus mais de quatro mil quilómetros foram percorridos de canoa durante nove meses, está de resto documentada na exposição Descida do Rio Níger – que vai continuar patente na Casa da Cultura de Melgaço até 31 de Agosto.

“Foi durante essa viagem, de certo modo iniciática, que Jean Rouch descobriu a mitologia dos povos locais, e a sua similitude com a mitologia grega”, nota Surugue, recordando que o explorador escreveu depois uma tese sobre a religião e a magia no povo songhay. “Foi aí que ele percebeu que estas cerimónias eram a ópera total, que põe em diálogo o homem com os deuses”, observa o cineasta e musicólogo. “Ele tinha uma grande sensibilidade poética, aliada a uma grande curiosidade e rigor científicos”, acrescenta.

Na agenda de trabalho da Fundação Jean Rouch está actualmente a divulgação, por todo o mundo, do acervo de filmes deixados pelo cineasta e que se encontram à guarda da Biblioteca Nacional de França, entre os quais “há ainda registos inéditos à espera de estudo”, nota Surugue.