Pode a onda de calor ser uma oportunidade?

Se nas últimas três décadas, os cidadãos não sentiam os impactos das alterações climáticas e encaravam as conclusões como previsões, os últimos anos mudaram radicalmente as regras do jogo. A observação ajuda a perceber.

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Heino Kalis/Reuters

Não há como negar. Só Donald Trump, o Partido Republicano Americano e alguns grupos de lobby mundiais insistem que o clima não está a mudar. Por certo não vemos os mesmos canais de televisão, não ouvimos as mesmas rádios e não consultamos o mesmo Google. Como pode alguém continuar em negação depois do que aconteceu durante Julho em todo o mundo? 

O mês passado começou com chuvas torrenciais, cheias severas e deslizamentos de terras no Japão que mataram 220 pessoas, tragédia que foi seguida por uma onda de calor sem precedentes no país nipónico que atingiu 41.1ºC, matou 80 pessoas por insolação numa semana e levou 35.000 pessoas ao hospital. Taiwan bateu a temperatura recorde de 40.3ºC, o deserto do Saara também registou a temperatura mais alta de África até hoje: 51.3ºC. Mais de 30 pessoas morreram no Canadá devido à onda de calor. Nos Estados Unidos, os incêndios foram devastadores.

Na Europa, a situação não tem estado mais calma: a onda de calor assolou países nórdicos como a Noruega, a Suécia e a Finlândia. Na Grã-Bretanha, a onda de calor destruiu grande parte das culturas. Incêndios igualmente devastadores na Grécia vitimizaram quase 90 pessoas.

Em Julho, a onda de calor atingiu o Hemisfério Norte que é o mesmo que dizer metade do planeta. Nas últimas semanas passámos das previsões dos estudos e profecias de cientistas e climatologistas para a observação “em directo” de todos estes eventos climáticos extremos. O clima mudou e vai continuar a mudar. Que não tenhamos dúvidas quanto a isto, por favor.

É também inegável que estamos a testemunhar um ponto de viragem na forma como as alterações climáticas são percebidas pelas pessoas. Se nas últimas três décadas — altura em que começaram a ser feitos estudos sobre os impactos das alterações climáticas — os cidadãos não sentiam os impactos e encaravam as conclusões como previsões, os últimos anos mudaram radicalmente as regras do jogo. A observação ajuda a perceber.

Os impactos estão à vista de todos: mortes humanas, mortes de animais, alcatrão das estradas que derrete, gado que fica sem relva, palha e forragens, produtos agrícolas que não vingam e a lei da oferta e da procura a funcionar — os produtos agrícolas rareiam e os preços aumentam.

Por isso, pergunto: pode a onda de calor ser uma oportunidade? Sim, pode. Os cépticos estão a deixar de ser cépticos e, se quisermos, esta vaga de calor pode ser o ponto de viragem que precisamos para acreditar que devemos e podemos restringir as alterações climáticas. Combatê-las. Como? Acelerando o caminho para a neutralidade carbónica.

Temos de conseguir reduzir as nossas emissões de gases com efeito de estufa para que o balanço entre emissões e remoções destes gases na atmosfera seja nulo. Os governos e as empresas têm que o fazer nos maiores sectores emissores — que em Portugal são a energia, os transportes e os resíduos — e têm que tirar o maior partido da floresta e da agricultura enquanto sequestradores de carbono. Ou seja, para uns sectores poderem emitir gases com efeitos de estufa, outros têm que conseguir captar essas mesmas emissões. Só assim haverá equilíbrio. Nós, cidadãos, também podemos contribuir para a redução das emissões, basta querermos.

Por isso, pergunto: o que é que verdadeiramente te preocupa a ti sobre as alterações climáticas? A minha preocupação é muito simples: preocupa-me que a geração dos meus bisnetos não vingue. Senão vejamos: a planície do Norte da China, uma das regiões mais povoadas do mundo e o centro de produção agrícola do país, pode tornar-se inabitável entre 2070 e 2100 devido às repetidas ondas de calor que estão previstas. O ar será tão quente e húmido que a transpiração não será suficiente para arrefecer a temperatura do corpo humano. Pessoas saudáveis sentadas à sombra podem sucumbir em seis horas. Bem sei que ainda falta muito para 2070, mas, eventualmente, os meus bisnetos andarão cá por essa altura.

Não tenhamos dúvidas de que estamos a viver um ponto da nossa história, que não tem de ser de inflexão. Que tenhamos forças para fazermos tudo o que estiver ao nosso alcance. Pelos meus e pelos teus bisnetos.

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