O fim do silêncio das vítimas de pedofilia da Igreja Católica italiana

Francesco. Diego. Emilio. Roberta. Têm nome, têm rosto. Foram vítimas de pedofilia por parte de membros do clero italiano e partilharam as suas histórias com o fotógrafo Tomaso Clavarino.

Foto
Tomaso Clavarino

O fotógrafo italiano Tomaso Clavarino interessa-se por temas controversos, pouco documentados, difíceis de traduzir em imagem. Por esse motivo, decidiu debruçar-se sobre o tema da pedofilia em contexto eclesiástico, em Itália. A influência do Vaticano sobre Roma, que o fotógrafo diz “contaminar todas as camadas da sociedade italiana”, faz com que o assunto tenha pouca presença nos meios de comunicação do país – uma tendência que gostaria de quebrar com a publicação do projecto Confiteor (I Confess) nos meios de comunicação social e, depois, em formato foto-livro. Dezenas de casos e testemunhos de vítimas de actos de pedofilia perpetrados por membros do clero estarão compilados num documento que pretende causar desassossego no seio da sociedade italiana e no imo do Vaticano.

“Era o preço a pagar pelo carinho”

Francesco Zanardi tinha 12 anos quando sofreu o primeiro abuso sexual. “Frequentávamos todos a mesma paróquia, em Savona”, contou ao fotógrafo italiano. “Éramos três rapazes e provínhamos todos de famílias desestruturadas: havia quem não tivesse pai, quem tivesse uma mãe alcoólica; eu não tinha nem um nem outro.” Os menores eram acólitos da igreja local e o padre levava-os a acampar com regularidade. “Era comum pernoitarmos e ele pedia-nos que dormíssemos com ele. Nós pensávamos que era o preço que tínhamos que pagar pelo carinho que ele nos dava. Afinal, ele deu-nos uma família, ouvia-nos, tratava-nos como se fosse nosso pai… A nós, que não tínhamos ninguém...”

Durante anos, Francesco viveu “com a vergonha dessas memórias”. “Mesmo hoje”, acrescenta, “algumas vítimas ainda consideram errado denunciá-lo porque ele nos amou, mesmo que de uma forma destruidora; porque nos deu o afecto de que um rapaz precisa para crescer”. Francesco guardou segredo desse passado durante 30 anos, mas, em 2009, após ter partilhado a história com um amigo, decidiu torná-lo público. “Pensei: ‘Basta’.” Além da denúncia do seu caso às autoridades, Francesco fundou a associação Rete L’Abuso, que descreve como “um grupo de activistas voluntários, vítimas e profissionais”, que se dedicam à denúncia de casos de abuso sexual perpetrados por padres da Igreja Católica e à protecção legal e psicológica das vítimas.

Foto
Tomaso Clavarino

Sem a ajuda de Francesco e do seu volumoso arquivo de casos ocorridos em Itália nas últimas décadas, o projecto fotográfico Confiteor (I Confess) nunca teria conhecido a luz do dia. Tomaso Clavarino contou ao P3, por Skype, que dedicou dois anos e meio de trabalho contínuo ao trabalho que publica agora, pela primeira vez, num meio de comunicação social. “Não foi fácil encontrar as vítimas de abuso e foi ainda mais difícil convencê-las a participar”, revelou. “Não confiam nas pessoas, menos ainda nos fotógrafos e nos jornalistas. Têm vergonha, têm medo, não querem reviver ou partilhar as suas memórias. Em muitos casos, nem a própria família conhece o seu passado.”

Clavarino fez dezenas de contactos para conseguir dar corpo ao seu projecto. “Em cada dez pessoas, em média apenas três aceitaram participar.” O primeiro retratado foi, precisamente, Francesco. “Depois do abuso sexual de que foi vítima, começou a consumir drogas. É um escape comum entre vítimas de pedofilia”, refere o fotógrafo. Toxicodependência, alcoolismo, depressão, tentativas de suicídio são algumas das consequências a longo prazo dos abusos sexuais na infância.

Diego, por exemplo, também vítima de pedofilia por um membro da Igreja Católica italiana, toma um “cocktail de comprimidos antidepressivos diariamente” e nem esses são capazes de o libertar dos sintomas da doença. Não tem emprego. “O seu quadro clínico fez com que lhe fosse retirada a licença de porte de arma, uma ferramenta necessária para o cumprimento da função que exercia, a de guarda particular”, explica o fotógrafo. “Na vida das pessoas, todos os acontecimentos estão interligados. As cicatrizes de um abuso sexual na infância nunca desaparecem.”

Foto
Tomaso Clavarino

“O abraço transformou-se numa porta trancada”

Emilio tem o mesmo sonho todas as noites: “A mão peluda do padre agarra-o e leva-o para um quarto escuro”. Cresceu na Calabria, no Sul de Itália, numa pequena cidade de montanha, com o sonho de um dia se tornar sacerdote. Foi no seminário que conheceu o seu abusador. “Foi o primeiro professor a dar mais atenção às crianças”, explicou Emilio ao fotógrafo. “A atenção transformou-se num abraço e o abraço transformou-se numa porta trancada à noite.”

Emilio era apenas um dos vários rapazes que o padre visitava secretamente. “Há muitas vítimas que me falam dos padres que abusaram deles como pessoas muito importantes nas suas vidas”, explica o fotógrafo. “Para a criança, é agradável estar entre os favoritos do padre, é algo que a deixa feliz. Significa que pode frequentar a sua casa, ver televisão na sua companhia. Talvez o padre até a nomeie capitão ou capitoa de equipa de um jogo de futebol. Existe um jogo de poder, de privilégio, que se vai estabelecendo ao longo do tempo, entre o padre e o menor.”

“O abuso sexual que surge na relação constitui um acto de violência física, sim, porque o contacto é físico, mas a violência psicológica subjacente a esse acto é igualmente relevante. É especialmente grave porque as crianças confiam nesse homem. Para lá do abuso sexual, elas sofrem uma traição. E quando essa vem da parte de alguém que, muitas vezes, é o substituto do pai ou da mãe, o dano torna-se exponencial. É muito importante não esquecer isso.”

Tomaso Clavarino
Fotogaleria
Tomaso Clavarino

“O lobo caça sempre a ovelha mais fraca”

De acordo com a investigação de Tomaso Clavarino, existem traços comuns entre todas as vítimas de abuso sexual que conheceu: “À data, eram crianças pobres que viviam em pequenas aldeias ou vilas onde a Igreja e o padre ainda desempenhavam um papel de grande relevância social”.

“Quando penso nestes casos, lembro-me sempre da história que os meus pais me contavam, em criança, sobre as ovelhas e o lobo”, discorre. “O lobo caça sempre a ovelha mais fraca do rebanho, diziam. A criança mais pobre, a menos educada, a que tem o historial de problemas familiares, neste contexto, será sempre a escolhida.” O motivo é simples: “Porque é mais fácil.” Nas aldeias e vilas italianas, “o padre é uma das pessoas mais importantes da comunidade”, salienta o fotógrafo. “Através da instituição, ele distribui bens pelas famílias, ajuda-as. Além disso, desfruta de um statu quo que facilita a sua integração: é uma pessoa bem-vinda nos almoços de domingo, é o ilustre convidado de um lanche de Natal.” E deixa um alerta: “Por vezes, as pessoas até sabem que o padre é o ‘lobo’, mas não podem – ou não querem – expulsá-lo porque as ligações que criaram com ele são demasiado importantes. Há casos em que a comunidade tem, de facto, conhecimento dos abusos, mas escolhe não ver, não ouvir, não reagir. Porque é melhor para todos que nada mude.” O factor económico pode ser decisivo, no seio de uma comunidade desfavorecida. “É mais fácil para um padre pedófilo ‘caçar’ neste ambiente do que no meio da alta sociedade de Milão, onde não há carência e onde os fiéis não dependem da Igreja ou da relação com o padre de forma alguma.”

Roberta, siciliana de Augusta – uma cidade que Clavarino classificou de “difícil” – teria 16 anos aquando do abuso sexual. “Foi violada dentro da igreja pelo padre”, contou Tomaso. “Resolveu ir à polícia denunciá-lo. A polícia sugeriu que ela levasse consigo uma câmara oculta e filmasse o novo abuso. Assim fez. O padre foi preso.” O que sucedeu à sua detenção foi inesperado. “A comunidade de Augusta isolou Roberta, passou a desprezá-la. Foi a sua própria família que deu início a uma manifestação de apoio ao padre. As pessoas gritavam na rua que ela era uma prostituta, que tinha denunciado o padre por dinheiro. Este é um caso ilustrativo do apoio que um padre culpado pode receber de uma comunidade. E dos efeitos secundários inesperados que podem surgir de uma denúncia, para uma vítima de abuso sexual.”

“Ser padre ajuda a não se ser preso”

Tomaso Clavarino não sabe se ser padre é uma vantagem para um abusador sexual de menores, mas está seguro que “ser padre ajuda a não se ser preso” quando se comete esse tipo de crime. O poder económico da Igreja e do Vaticano é, segundo o fotógrafo, um factor importante, mas nem sempre determinante. “O poder financeiro determina a qualidade da defesa”, explica. “E quando refiro que as vítimas provêm de meios socioeconómicos desfavorecidos, significa que não têm meios para comportar as despesas inerentes a uma defesa forte, competente. São quase sempre atribuídos advogados oficiosos às vítimas, e o resultado é previsível.”

Mas, na realidade, poucos casos chegam aos tribunais italianos. Porquê? “Porque a Igreja, a instituição, é a primeira a ser informada quando se dá um caso de pedofilia que envolva um clérigo, em Itália.” Segundo o acordo firmado entre o Estado italiano e a Santa Sé, em 1984 (adenda ao ponto 2, parágrafo b), “a República Italiana assegura que a autoridade judiciária fará a comunicação com a autoridade eclesiástica da área onde decorre o processo penal contra os eclesiásticos”. Esse pré-aviso, em conjunto com a acção definida pelo documento emitido pelo Vaticano em 1962, intitulado Crimen Sollicitationis – um documento enviado a todos os bispos italianos que indica o modus operandi perante casos conduta sexual indevida por parte de membros do clero –, dificulta o andamento do processo judicial. “O que geralmente acontece é o padre ser transferido para outra comarca. Normalmente, é colocado numa outra cidade, onde não é conhecido. Entretanto, o novo pároco e outros membros da Igreja intervêm no sentido de persuadir a vítima a retirar a queixa ou de a dissuadir de efectuar a denúncia, recorrendo mesmo a compensação monetária em troca de silêncio.”

A afirmação do fotógrafo é corroborada pelo relatório do Comité para os Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas, publicado a 25 de Fevereiro de 2014, que afirma que, no contexto em questão, “as crianças e as suas famílias foram, frequentemente, culpadas e desacreditadas pelas autoridades religiosas, desencorajadas de apresentar queixa e, em alguns casos, humilhadas publicamente”. “O silêncio e a confidencialidade são impostos às vítimas e às suas famílias como pré-condição para uma compensação financeira.”

Casos “voluntariamente esquecidos”

Na eventualidade de o processo ser estritamente interno – quando a criança e a família comunicam unicamente com a instituição eclesiástica e não com as autoridades civis – a possibilidade de afastamento do pároco da sua profissão ou da ocorrência de qualquer punição pode tornar-se ainda mais remota. O relatório da ONU supracitado refere que “graças a um código de silêncio imposto [pela Santa Sé] a todos os membros do clero – sob pena de excomunhão – casos de abuso sexual de crianças raramente foram relatados às autoridades dos países onde foram cometidos os crimes”. “Pelo contrário”, continua, “houve casos de freiras e padres que foram ostracizados, despromovidos, afastados da instituição, por não respeitarem a obrigação de silêncio; assim como houve casos de padres que foram congratulados ou premiados por se recusarem a denunciar os colegas abusadores sexuais.”

Foto
Francesco Zanardi tinha 12 anos quando sofreu o primeiro abuso sexual. Tomaso Clavarino

A ONU acusa ainda a Santa Sé de “dar, sistematicamente, prioridade à preservação da reputação da Igreja e do alegado infractor em detrimento do interesse e protecção das crianças vítimas [de abuso sexual]”.

Existe, na lei italiana, outro factor dissuasor da denúncia e que está relacionado com a lei de prescrição de crime. “Muitas das vítimas só compreendem o que aconteceu já quando são adultas. Só entendem que foram vítimas de um acto criminoso muitos anos depois de este ter ocorrido. Em muitos casos, a coragem e a vontade de denunciar esses crimes esbarra na lei italiana, que considera que, passados 20 anos, um acto de pedofilia deixa de ser crime.

“Em Itália, há assuntos intocáveis”

Na opinião do autor de Confiteor (I Confess), os meios de comunicação social italianos estão condicionados a tratar “com cuidado” todos os assuntos que envolvem a Igreja e o Vaticano, motivo pelo qual em tantos países já “explodiram escândalos” relacionados com pedofilia e a Igreja Católica e em Itália mantém-se o silêncio. “Existe uma espécie de censura que é mais profunda e complexa do que uma proibição”, refere Tomaso Clavarino. “Faz parte da cultura italiana. Está subliminarmente inscrita na nossa forma de pensar, como se do seu cumprimento dependesse a nossa estabilidade social. Em Itália, há assuntos que são intocáveis. Assim se vive como há séculos.”

Em dez anos (entre 2004 e 2014), “o Vaticano recebeu mais de 3400 queixas credíveis de abuso sexual de menores”, afirmou o observador permanente da Santa Sé na ONU, Silvano Maria Tomasi, em Maio de 2014, perante o comité da organização mundial. “Apenas em 2013, foram relatados 401 casos.”

Em Julho de 2015, o Papa Francisco diria ao controverso jornalista de La Repubblica Eugenio Scalfari, numa conversa informal, que “dois por cento dos pedófilos são padres, bispos e cardeais”. A afirmação nunca viria a ser contestada ou corrigida pelo pontífice; já o Vaticano viria a pronunciar-se oficialmente poucas horas após a publicação da notícia: “As frases que Scalfari atribui ao Papa, que coloca entre aspas, são produto da sua memória [da conversa que mantiveram] e não de uma transcrição exacta ou de uma gravação.”

Confiteor (I Confess), ainda em formato de maqueta, poderá ser encomendado no site da editora Zine Tonic Editions. O projecto, que não está ainda dado como terminado, foi recentemente distinguido pelo Festival de Fotografia de Atenas, pelo Festival de Fotografia Europeia (Itália) e foi projectado na semana de inauguração dos Encontros de Fotografia de Arles, em Julho de 2018. Foi recentemente vencedor dos concursos Zine Tonic Dummy Award e do Prémio Voglino Talento Jovem, em Itália. O fotógrafo de Turim já recebeu uma bolsa do Pulitzer Center on Crisis Reporting e o seu trabalho já conheceu publicação em jornais e revistas de todo o mundo, como The Atlantic, Der Spiegel, Al Jazeera, The Guardian, Courrier International, PÚBLICO, Newsweek Japan, La Repubblica, entre outros.

Casos de pedofilia noutros países

Austrália, 2017. Numa investigação que teve início em 2013, a Comissão Real Australiana sobre Respostas Institucionais ao Abuso Sexual de Crianças revelou que 4444 crianças foram vítimas de abusos sexuais nas mais de mil instituições da Igreja Católica de toda a Austrália, entre 1950 e 2010. Concluiu também que 7% dos padres católicos do país cometeram actos de pedofilia.

Holanda, 2011. Uma Comissão de inquérito independente concluiu que, entre 1945 e 2010, “mais de 20 mil menores foram abusados por 800 padres da Igreja Católica holandesa”.

Irlanda, 2009. Após três anos de inquérito, a Comissão da Arquidiocese de Dublin concluiu que houve por parte da Igreja Católica irlandesa tentativa e logro no encobrimento de milhares de casos de pedofilia perpetrados por padres da instituição, entre 1975 e 2004.

Estados Unidos da América, 2004. Um relatório publicado a 27 de Fevereiro dá conta da existência de mais de 11 mil alegações de abusos sexuais sobre crianças perpetrados por 4450 padres da Igreja Católica – cerca de 4% dos 110 mil padres que serviram entre 1950 e 2002 no país.

Sugerir correcção
Comentar