A Alemanha em busca do seu lugar

A simples ideia de uma Alemanha nuclear é, talvez, um dos indicadores mais preocupantes da incerteza que continua a pairar sobre o futuro da Europa.

1. Paulo Rangel escreveu na última semana um texto a todos os títulos recomendável. O tema era um tanto ou quanto inesperado, embora não seja a primeira vez que se fala dele. É um tema perturbador porque, no registo da memória, a Alemanha continua a não ser um país totalmente normal. Mas não é um texto alarmista. Apenas uma chamada de atenção oportuna, que abre caminho para outras reflexões, como o título indica: “Europa pós-Trump: e se a Alemanha se tornasse uma potência nuclear?” A ideia pode parecer, à primeira vista, absurda. Convém também lembrar que não é popular na Alemanha, onde se regista ainda uma maioria que não quer largar mão do pacifismo que dominou a República Federal sobretudo nos anos de 1970 e 1980. Apenas um episódio. Quando, em 1982, Helmut Schmidt e, depois, Helmut Kohl tentavam convencer os alemães da necessidade da instalação de mísseis de cruzeiro com ogivas nucleares americanos na República Federal para reequilibrar os SS-20 instalados pela União Soviética na Alemanha de leste, manifestações gigantescas encheram as ruas das cidades alemãs. Schmidt acabou por cair. Parte dos mísseis ainda lá estão. De vez em quando, um líder político lembra-se deles, normalmente em campanha eleitoral, para dizer que as armas nucleares americanas devem regressar a casa. O liberal Guido Westerwelle lembrou-se delas no final do segundo Governo de coligação CDU/CSU-FDP de Merkel, quando se preparava para uma derrota monumental. Mais recentemente, Martin Schulz, quando liderou o SPD nas eleições de Setembro passado, lançou a mesma ideia, que teve o mesmo destino: o rápido esquecimento. A Alemanha ainda é o país da União Europeia com maior presença militar americana.

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1. Paulo Rangel escreveu na última semana um texto a todos os títulos recomendável. O tema era um tanto ou quanto inesperado, embora não seja a primeira vez que se fala dele. É um tema perturbador porque, no registo da memória, a Alemanha continua a não ser um país totalmente normal. Mas não é um texto alarmista. Apenas uma chamada de atenção oportuna, que abre caminho para outras reflexões, como o título indica: “Europa pós-Trump: e se a Alemanha se tornasse uma potência nuclear?” A ideia pode parecer, à primeira vista, absurda. Convém também lembrar que não é popular na Alemanha, onde se regista ainda uma maioria que não quer largar mão do pacifismo que dominou a República Federal sobretudo nos anos de 1970 e 1980. Apenas um episódio. Quando, em 1982, Helmut Schmidt e, depois, Helmut Kohl tentavam convencer os alemães da necessidade da instalação de mísseis de cruzeiro com ogivas nucleares americanos na República Federal para reequilibrar os SS-20 instalados pela União Soviética na Alemanha de leste, manifestações gigantescas encheram as ruas das cidades alemãs. Schmidt acabou por cair. Parte dos mísseis ainda lá estão. De vez em quando, um líder político lembra-se deles, normalmente em campanha eleitoral, para dizer que as armas nucleares americanas devem regressar a casa. O liberal Guido Westerwelle lembrou-se delas no final do segundo Governo de coligação CDU/CSU-FDP de Merkel, quando se preparava para uma derrota monumental. Mais recentemente, Martin Schulz, quando liderou o SPD nas eleições de Setembro passado, lançou a mesma ideia, que teve o mesmo destino: o rápido esquecimento. A Alemanha ainda é o país da União Europeia com maior presença militar americana.

2. A simples ideia de uma Alemanha nuclear é, talvez, um dos indicadores mais preocupantes da incerteza que continua a pairar sobre o futuro da Europa. Os argumentos, que Paulo Rangel explica, têm directamente que ver com a crise da aliança transatlântica, que ficou visível na última cimeira da NATO (14 e 15 de Julho). A chanceler referiu na altura que a Europa se tinha de preparar para ficar por sua conta em matéria de segurança e defesa. Para além da NATO e da União Europeia, Trump ataca particularmente a Alemanha. A dúvida está instalada sobre se os EUA mantêm o seu compromisso com o Artigo 5.º do Tratado de Washington, que garante a defesa colectiva.

A ameaça mais directa à segurança europeia reemerge no mesmo lugar onde já esteve: a leste. Não se chama União Soviética, não dispõe do mesmo poderio nuclear e convencional gigantesco, nem de uma ideologia que disputava ao Ocidente democrático a hegemonia mundial. Chama-se Rússia, que sempre lá esteve, o seu apelo internacional é inexistente, a sua ideologia é o nacionalismo agressivo. Quando sair, o Reino Unido leva com ele uma das duas únicas capacidades nucleares europeias permitidas pelo Tratado de Não Proliferação.

A questão seguinte também pareceria óbvia, mas não é. Caberia à França colocar a sua force de frappe nuclear ao serviço da União Europeia, evitando eventuais tentações alemãs. É difícil. Nos equilíbrios internos da União, a enorme capacidade económica alemã sempre foi contrabalançada pela liderança política francesa e pela sua capacidade militar. Foi assim até ao fim da Guerra Fria quando existiam duas “Alemanhas”. A ascensão alemã depois da reunificação e o seu poder económico, acentuado pela crise do euro, apenas sublinharam a importância da superioridade militar francesa. Hoje, com a ordem internacional liberal a dar lugar ao caos, essa superioridade torna-se mais evidente e a dimensão militar europeia mais necessária. Ora, neste domínio, a Alemanha ainda dá os primeiros passos. As suas Forças Armadas não conseguem sequer manter operacionais as suas capacidades convencionais. O orçamento da Defesa é mínimo e vai subir devagar. A opinião pública ainda é pouco favorável às intervenções militares no estrangeiro. Mas um cenário que ponha em causa os dois pilares em que assentou a construção da República Federal e o seu regresso ao concerto das nações civilizadas — a dupla aliança com os EUA e com a França — preocupa cada vez mais as elites. O Financial Times escrevia na sexta-feira passada que “muitos na Alemanha se questionam sobre se podem continuar a confiar nos EUA de Trump”. Mas acrescentava que, em Berlim, há a consciência de não haver alternativa.

3. É interessante, aliás, comparar o que se passa na Alemanha com o que está a acontecer no Japão, a outra potência derrotada da II Guerra. Não foi preciso esperar por Donald Trump para que os japoneses começassem a debater, discretamente, se o Tratado de Defesa que assinaram com os Estadas Unidos depois da guerra continua a valer o mesmo. Com a eleição do actual Presidente essa preocupação aumentou. A emergência da China é a sua razão de ser. Há sinais pouco tranquilizadores. O Acordo de Comércio Transpacífico, negociado por Obama com o Japão e mais 11 países da bacia do Pacífico, mas sem a China, traduzia a preocupação americana em manter o equilíbrio de forças na região, não apenas militar mas também económico. Trump abandonou o acordo e nem sequer disse que tenciona renegociá-lo. A saída dos EUA tem um efeito imediato: leva os países que rodeiam a China, alguns aliados dos EUA, a reavaliarem a sua capacidade de resistência ao Diktat de Pequim. Na semana passada, o chefe da diplomacia alemã, Heiko Maas, de visita a Tóquio, propôs ao seu homólogo uma aliança entre as potências “multilateralistas”. Os dois países enfrentam os mesmos dilemas, da segurança ao excedente comercial com os EUA. Também no Japão a questão nuclear vem, de vez em quando, à baila. Também o Japão dispõe da tecnologia necessária para fabricar uma bomba atómica num período de tempo curto. Os dois países sentem-se frustrados por não estarem representados em permanência no Conselho de Segurança da ONU, apesar do seu poder económico (a terceira e a quarta economias do mundo).

4. A Alemanha começa a confrontar-se com algumas limitações, que não são apenas militares. Na imprensa multiplicam-se as histórias sobre o relativo atraso tecnológico O caso do novo aeroporto de Berlim já é um clássico. Agora, é caso Lidl que percorre as páginas de alguns jornais. “O desastre do software do Lidl, mais um exemplo do fracasso digital da Alemanha”, escreve o Handelsblatt. O caso é fácil de contar. Estava para ser, diz o jornal, “um grande salto em frente digital da maior cadeia alimentar discount alemã”. “Mas, depois de sete anos e 500 milhões de euros, o novo sistema de gestão de inventário criado pela SAP foi declarado morto à chegada.” A SAP é a maior multinacional alemã de soluções “inteligentes” para as empresas. O sistema, que estava a ser planeado desde 2011, até teve direito a um pseudónimo simpático, “eLWIS”, que se lê “Elvis” em alemão. Mas, em Maio do ano passado, o chefe do departamento de informática do Lidl demitiu-se e o “Elvis” foi declarado morto. O jornal refere que a responsabilidade talvez seja da mentalidade do “sempre fizemos assim” que domina o Lidl. O site Politico contava a história de uma reunião recente da chanceler com os maiores cientistas alemães no domínio da inteligência artificial para verificar o estado da arte, depois de uma visita ao centro onde a China desenvolve a mesma investigação. A investigação científica alemã pode estar ao nível dos padrões europeus. A transferência para o tecido económico é, dizem os especialistas, o elo fraco da cadeia. Para além da vantagem americana, que nenhum país europeu ou outro qualquer consegue sequer desafiar, Merkel compreendeu que a China aposta todas as fichas na investigação e na inovação. O risco é a Alemanha cair na auto-satisfação própria de um país que resistiu bem à crise e que (ainda) tem uma economia altamente competitiva. Mas que continua a fabricar, como a própria chanceler tem dito várias vezes, aquilo que fabricava há 100 anos. Não se trata de dizer mal da Alemanha, longe disso. Trata-se apenas de perceber e de aprender com o debate interno que se trava em Berlim, no qual a chanceler é uma participante activa e sem ilusões.

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