O No Noise mudou-se para um convento abandonado para continuar a ser o “menor festival de Verão”

O festival organizado pela Sonoscopia mudou-se à quarta edição para o Convento de Francos, soltando amarras naquele espaço abandonado desde o início do século para um programa composto por instalações sonoras e 15 actuações dentro do espectro da música experimental nacional e internacional.

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Numa tarde de calor abrasador há um refúgio com seis mil metros quadrados que resguarda 15 projectos musicais do circuito da música experimental nacional e internacional numa sombra partilhada por cerca de duas centenas de pessoas que ali estão para os ver, ouvir e sentir.

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Numa tarde de calor abrasador há um refúgio com seis mil metros quadrados que resguarda 15 projectos musicais do circuito da música experimental nacional e internacional numa sombra partilhada por cerca de duas centenas de pessoas que ali estão para os ver, ouvir e sentir.

Estamos num convento abandonado, em Francos, longe da Baixa do Porto, no “menor festival de Verão” (chama-lhe assim a organização) que já tinha arrancado da parte da manhã deste último sábado com programação direccionada para os mais novos – futuros candidatos a questionarem todas as possibilidades que os sons oferecem enquanto matéria-prima para a música.

É a quarta edição do No Noise, também catalogado como “um não-festival”, que em oposição ao nome faz-se também de ruído, mas igualmente de silêncios e, acima de tudo, de qualquer som emitido pelo quebrar de fronteiras e preconceitos associados a padrões de composição.

Organizado pela Sonoscopia, sai pela primeira vez das instalações da associação com base no Carvalhido e cresce em área, conservando o epíteto de “festival” fora do circuito onde se movem as grandes massas. É um facto, o perímetro alcançado por esta forma de construção musical – talvez o mais correcto seja dizer várias formas de construção – nunca foi e não é o mais largo. Porém, prova este colectivo ao longo dos sete anos de actividade que há massa crítica com expressão suficiente para justificar o trabalho diário que desenvolve na sua sede.

E é onde outrora viviam em clausura as irmãs Carmelitas Descalças que se soltam as amarras ao som. É impossível passearmos pelos jardins da quinta do convento abandonado há mais de uma década sem as imaginarmos a circular por ali no desempenho das tarefas diárias.

É também impossível não questionarmos como é que espaços com esta dimensão e potencial ficam entregues ao abandono. Já este ano foi anunciado que existe para ali um projecto para transformar o espaço num centro espiritual e cultural. Diz quem lá esteve nas últimas semanas a limpar o recinto engolido pela vegetação que o lugar está agora irreconhecível. As três cabras e o bode que ali vivem com três galinhas não chegam para executar a tarefa que se esperava que desempenhassem quando para ali foram. O aparelho digestivo dos quatro não tem espaço para tanto alimento. Foram os membros da associação e alguns voluntários que levaram a cabo os trabalhos de limpeza.

Aberto o caminho para que o som pudesse espalhar-se a partir dos dois palcos do jardim e dos outros três no interior do edifício do convento, reuniam-se as condições para que este espaço se transformasse durante um dia num microcosmos representativo do que a música experimental tem para oferecer.

Cacofonias, mantras e noise

A primeira das 15 actuações a que assistimos arrancou no jardim com o trio Thea Soti, Mike McCormick & Mascha Corman, que junta uma sérvia, uma alemã e um canadiano. Apostaram numa narrativa assente numa linha de base electrónica traçada por McCormick a servir de cenário para um diálogo cacofónico, ora esquizofrénico, ora de tranquilidade, entre o duo de vocalistas que apenas por breves momentos se serviram da palavra. Jogaram bem com os silêncios e conseguiram tirar o melhor partido da paisagem sonora da envolvente – uma quinta no meio da cidade. No final da noite voltaram ao mesmo palco para um set que contou com João Pais Filipe na bateria.

Foi precisamente o baterista portuense que se seguiu. Noutro sector do jardim, apresentou o seu novo solo – um mantra de meia hora com bombos e um timbalão num loop quase xamânico, cortado pelo som dos pratos (que o próprio constrói), por vezes mais contidos e noutros momentos mais expansivos.

João Pais Filipe, que já há muito tempo descobriu a sua linguagem, tem-se afirmado de há uns anos para cá como um dos nomes mais prolíferos do cenário portuense. No início do ano lançou com o saxofonista berlinense baseado no Porto, Julius Gabriel, o álbum homónimo dos Paisiel, onde não foge ao seu cunho e sai beneficiado pelo saxofone frenético do colega, que o catapulta para outra dimensão. No mesmo dia, ainda serviu de base rítmica para a electrónica minimal de Stereoboy.

A meio da tarde entravamos pela primeira vez no Oratório, dentro do edifício principal, para espreitar o duo português e francês RRR. Apresentaram numa sala onde cabem apenas umas dezenas uma experiência sonora de contrabaixo suspenso em uma ou duas notas que se apoiam numa base noise manipulada em tempo real.

Pela mesma sala passaram o alemão Ignaz Schick e o britânico Paul Abbott, que se divide entre Londres e o Porto. O primeiro apresentou um noise que recorre ao vinil e a outros materiais que vai manuseando. Actuou em dose dupla. À segunda vez, no Refeitório, voltou com o português Pedro Serrano.

Paul Abbott terá assinado uma das actuações mais consistentes do dia. Apoiada num diálogo entre a sua bateria e uma linha pré-programada, também de percussão, apresentou uma narrativa sonora assente no preenchimento dos silêncios de cada um dos emissores, sendo o seu kit de bateria o protagonista.

Do free jazz ao rock matemático

De apreensão mais imediata, tendo em conta o contexto onde estavam inseridos, os Parpar e os dUAS sEMI cOLCHEIAS iNVERTIDAS garantiram as actuações mais enérgicas do evento. Os primeiros, com palco montado no Jardim, por vezes a pisar o terreno do free jazz, e os segundos, que tocaram no Claustro, mais matemáticos, foram ao No Noise representar a ala de atitude mais roqueira.

Veterano nas lides da música experimental nacional, David Maranha juntou-se a João Alves para nos contar uma história de mar. A paisagem sonora criada pela sua bateria e pela parafernália electrónica do parceiro levaram-nos para tempestades marítimas seguidas de momentos de bonança. Qualquer apreciação crítica sobre o trabalho que foi apresentado pode facilmente transportar-nos para um território que desvirtua o próprio princípio da música experimental, que por si só não tem balizas. Por esse prisma, não há bom nem mau. Ou nos serve ou não nos serve. Neste caso, serviu-nos.

De outras actuações que nos serviram destacamos a do português Krake, que apresentou um solo de bateria competente com recurso a cordas instaladas no kit de percussão para serem tocadas pelo próprio com um arco.

A figura mítica que é Paulo Eno, um carismático que palmilhou os caminhos do punk até chegar a Ibiza onde deu vida a uma personagem que anima as festas do Bora Bora Beach Bar (Spider Man do Bora Bora), apresentou aos “58 anos e meio” um set marcadamente político com os seus Rantanplónicos – neste caso era só uma rantanplónica –, que tinha força suficiente para valer por si só. Optou por queimar meia hora com um discurso enaltecedor do seu passado musical. Serviu apenas para atrasar o início solo de bateria do austríaco Will Guthrie, por quem já muitos esperavam no Claustro.

Valeu a consistência da viagem rítmica patrocinada pelo músico. Transformou a sua bateria num veículo capaz de passar por várias paragens emocionais em crescendo e em direcção ao tumulto e ao caos contido desenhado pelas suas baquetas, momentos antes do trio Thea Soti, Mike McCormick & Mascha Corman regressar com João Pais Filipe para encerrar o evento cuja receita reverte na totalidade para os artistas.