Férias rimam com pincéis, agulhas, leituras e tigelas

Lembrei-me daquela mãe, recostada na cadeira da praia, concentrada num jogo colorido no telefone, enquanto os miúdos saltitam nas ondas e eu os vou puxando para mim, para que não sejam levados por uma mais forte.

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Amir Cohen/Reuters

Em vez do napperon, há um enorme plástico a tapar a mesa da sala de jantar. Em cima estão tintas, pincéis, gesso, água, moldes. Não é só a mesa da sala que está protegida, nós também temos aventais e umas mangas plásticas, os cabelos apanhados e, mesmo assim, estamos sujos das tintas e do gesso branco.

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Em vez do napperon, há um enorme plástico a tapar a mesa da sala de jantar. Em cima estão tintas, pincéis, gesso, água, moldes. Não é só a mesa da sala que está protegida, nós também temos aventais e umas mangas plásticas, os cabelos apanhados e, mesmo assim, estamos sujos das tintas e do gesso branco.

Quando éramos pequenos, as tardes de domingo podiam ser assim, dedicadas à expressão plástica, mas também podiam ser passadas na cozinha a tentar, por exemplo, esvaziar os ovos do seu conteúdo – o meu pai com um alfinete na mão direita e um ovo na mão esquerda, debruçado no lava-louças, e nós a acotovelarmo-nos na tentativa de espreitar, uns a torcer para que tivesse sucesso, outros nem por isso, para que todo o processo recomeçasse. Com o alfinete e a sua paciência de chinês, o meu pai tentava fazer os furos, depois soprava com força, a gema e a clara caíam numa tigela. Nós perdíamo-nos a rir. Depois, lá voltávamos para a mesa da sala de jantar para pintar as cascas com todo o cuidado, sem as partir.

A cozinha também era um local de eleição para se bater um bolo, para não desperdiçar as gemas e as claras, ou esticar a massa que o meu pai passava por uma máquina e transformava em tagliatelle fresco, que comeríamos naquela noite.

Depois das artes plásticas surgiram as têxteis. Um dia, o meu pai esticou uma espécie de uma rede plástica e prendeu-a com ripas de madeira, fazendo um quadrado. Quatro quadrados, o mesmo número de filhos. A cada um de nós foi dada uma folha quadriculada para desenharmos um padrão e a minha mãe orientou-nos para fazermos barras de duas cores. De agulha e lã grossa na mão, lá passamos o desenho para a rede emoldurada. Foi um Verão inteiro a fazer a almofada, ao final da tarde, com linha laranja e azul. Concentradíssimos, a passar a linha pelos buracos, para cima e para baixo, e os meus pais sossegados porque não se ouviam gritos nem implicações. Os mesmos novelos de lã serviram para aprender a fazer croché – depois da almofada, as pegas de cozinha, exactamente com o mesmo padrão. Era o princípio do enxoval!

O gesso, a plasticina, as tintas e as experiências científicas também ocuparam a mesa da sala da minha casa e as tardes de fim-de-semana dos meus filhos. Às expressões artísticas acrescentámos os jogos sociais, de tabuleiro e as cartas – estes essenciais para aprender a saber perder.

A farinha, o açúcar, os frutos secos e as claras em castelo continuam a fazer parte das nossas rotinas. Embora, na tigela, a farinha de trigo tenha sido substituída pela de aveia e o açúcar branco pelo amarelo ou pela stevia. Só não ensinámos a bordar, a fazer croché ou malha. O pai não sabe, eu nunca fui boa a matemática e esta é essencial. Em pequena, quando me enganava – “Seria uma meia, uma liga ou uma meia e três ligas? Ai!...” – era sempre a minha mãe que resolvia o imbróglio enquanto eu fugia, deitava-me à sombra a ler e a malha ficava esquecida por umas semanas.

Lembrei-me de tudo isto por causa das férias de Verão. Lembrei-me também porque recentemente, numa escola, os professores se queixavam da falta de comunicação entre pais e filhos e como esta se reflecte na sala de aula. “Quando estão com eles, estão todos agarrados aos telemóveis. Pais e filhos, que relação existe? Quando os educam?”, inquiria uma professora. Lembrei-me daquela mãe, recostada na cadeira da praia, concentrada num jogo colorido no telefone, enquanto os miúdos saltitam nas ondas e eu os vou puxando para mim, para que não sejam levados por uma mais forte e porque tenho saudades dos meus assim pequeninos. Lembrei-me porque as férias são para construirmos memórias boas com cheiro a maresia, com sabor a gelados, bolos e peixe grelhado, com leituras para pôr em dia e para partilhar, com pores do Sol de casaco pelas costas e com muitas gargalhadas.