Itália: a oposição é a Conferência Episcopal

O governo continua de vento em popa até ao debate do orçamento, em que o Cinco Estrelas e a Liga enfrentarão a realidade. Entretanto, a esquerda está em hibernação.

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1. Passo ao lado dos debates da imigração e da xenofobia — e do confronto entre soberanistas e europeístas — para centrar o olhar na cena política italiana. Começo por um desabafo do jornalista Fabio Chiusi, que diz mais ou menos isto: “A triste verdade é que não há alternativa ao populismo e as coisas podem até piorar se não fizermos nada. As revoluções do populismo depressa mostram o que são: ilusões. Mas, no horizonte, não se vêem alternativas.”

De facto, o Governo de Giuseppe Conte (na foto) e a aliança entre o Movimento 5 Estrelas (M5S), de Luigi di Maio, e a Liga, de Matteo Salvini, parecem de vento em popa. “A lua-de-mel continua”, dizem as sondagens. O Governo mantém uma larga taxa de aprovação — 61%. Por outro lado, os dois partidos lideram as tabelas das intenções de voto, ambos na casa do 30%. Num inquérito aos jovens, a maioria diz que o novo Governo representa “uma mudança para o país” e encarna “a vontade de renovação saída das eleições”. Note-se que só 14% se dizem favoráveis à saída do euro.

A maior preocupação dos antipopulistas é outra: a “clandestinidade” da oposição. Não há memória de ter sido tão débil desde os anos 1950. O Partido Democrático (PD) entrou em hibernação. Continua com uma liderança provisória. Adiou para Fevereiro o seu congresso. Os seus tenores limitam-se as debater as feridas e denunciar Salvini. A Força Itália de Berlusconi, semialiada da Liga, bate-se contra um imparável declínio. Fez esta semana um baroud d’honneur recusando aprovar na comissão parlamentar o candidato de Salvini para presidir à RAI: Marcello Foa, um “salvinista” admirador de Trump e Putin. Mas é tudo.

Para o jornalista Riccardo Paradisi, a oposição está reduzida à Conferência Episcopal Italiana, que critica duramente a política migratória de Salvini, ao ministro das Finanças, Giovanni Tria, e ao economista Tito Boeri, presidente do Instituto Nacional de Providência Social. Tria diz só dar luz verde às promessas eleitorais se houver dinheiro; e Boeri acusa a política migratória de Salvini de pôr em causa a sustentabilidade da segurança social.

 

2. O Governo ainda fez muito pouco. A Itália está suspensa das negociações do orçamento, a partir de Setembro. As contradições sistemáticas entre Di Maio e Salvini não têm prejudicado a coligação. As posições contrastantes até satisfazem os respectivos eleitores. Pelo menos até Setembro, quando chegar a hora de fazer as contas.

A coligação governamental é singular. Junta dois partidos que fizeram campanhas eleitorais contraditórias, tanto no plano ideológico como no programático. E soma dois eleitorados distintos. De forma simplista: um M5S que defende o “rendimento de cidadania”, uma maciça política assistencialista no Sul, e uma Liga cuja base nortista quer a redução dos impostos e recusa a distribuição de benesses no Sul.

No entanto, ambos os partidos da maioria precisam de mostrar aos seus eleitorados que cumprem os temas centrais da campanha eleitoral, o “rendimento de cidadania”, para o M5S, e a flat tax (uma taxa única de 15 a 20%) para a Liga. Em termos orçamentais, são promessas que entram em choque: uma aumenta a despesa, a outra reduz a receita. Esta questão levanta uma outra: qual é a política económica do Governo Conte? Ainda ninguém a definiu. Porque não há. Até agora, o discurso anti-imigração de Salvini ajudou a a desviar a atenção dos temas verdadeiramente “fracturantes” da coligação.

Caberá ao ministro Giuseppe Tria fazer a “quadratura do círculo”. E se ele bloquear as contraditórias ambições dos dois partidos? Teria o apoio da alta burocracia e de Bruxelas. E do Presidente Sergio Mattarella, que, no entanto, tem um ponto débil: é difícil pressionar um Governo que tem o apoio de 60% da opinião pública.

Anota o politólogo Paolo Pombeni que é difícil a Di Maio e a Salvini demitirem Tria, perante o risco de “fazer implodir o sistema sob o ataque dos mercados financeiros e chancelarias europeias”. O ministro tem, assim, uma “arma atómica”, mas também não a pode usar. É como na Guerra Fria.

Uma das perguntas mais frequentes é sobre a duração desta coligação. Até às eleições europeias de Maio, não parece que nenhuma das partes ganhe com o divórcio. Haverá seguramente conflito a partir de Setembro. Di Maio não pode romper porque não tem aliados. O PD excluiu todas as hipóteses de acordo. Neste aspecto, a Liga está em vantagem por ter uma alternativa ao M5S: recompor a aliança com Berlusconi, agora sob sua direcção.

Foi esta vantagem que permitiu a Salvini impor a sua agenda política na negociação do programa de governo. É também isso que força o M5S a “engolir” as provocações de Salvini. Conclui o historiador Luca Tentoni: “O jogo está nas mãos de Salvini, que, até ao fim da legislatura (ou talvez após as europeias), pode decidir quando e como pôr termo [à aliança]. Com boa paz de aliados de governo e adversários políticos.”

Diga-se que as europeias de Maio serão “uma batalha continental” pelo domínio do Parlamento Europeu. Dada a dimensão do desafio soberanista, deixarão de ser eleições “secundárias” dominadas pelos temas políticos nacionais.

 

3. Nos últimos dias regressou o tema do “homem forte” e reabriu-se o debate sobre a democracia parlamentar. Davide Casaleggio, o mentor do M5S, deu uma longa entrevista sobre o fim da democracia representativa e a inevitável emergência da democracia directa. Beppe Grillo, co-fundador do movimento, regressou à cena e proclamou de forma brutal: “Devemos compreender que a democracia está superada.” Os parlamentos podem ser dissolvidos e os cargos políticos decididos por sorteio entre os cidadãos — como na antiga Atenas. Contudo, uma sondagem (SWG) mostra que a ideia não fascina os eleitores do M5S: para 84% deles o parlamento é “muito ou bastante importante”.

Silvio Berlusconi e Matteo Renzi foram no seu tempo líderes fortes, que deixaram órfãos os seus adeptos. Hoje, o “líder forte”, na própria versão de Grillo, tem como modelo Vladimir Putin ou Donald Trump. Também Salvini, perante Di Maio, surge como “homem forte”. É o eleitorado da Liga quem mais aprecia este tipo de chefe. Mas o “consenso do carisma” pode mudar depressa, avisa o politólogo Ilvo Diamanti. E quanto tempo durará o consenso sobre o Governo Conte?

É prudente não fazer previsões nos dias que correm. A Itália é certamente um “laboratório político”. Difícil é interpretá-lo. Lembro que na noite da vitória do Syriza e Alexis Tsipras, em Janeiro de 2015, o italiano Paolo Flores d’Arcais proclamou: “Hoje na Grécia, amanhã na Espanha, depois da amanhã na Itália.” Não sonhava certamente com Matteo Salvini.

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