Um psiché (ou pechiché) é o que um português quiser

"Se perguntarmos a uma rapariga de 25 anos, ela não sabe o que é um psiché” - nem todos sabem o que é ou o que começou por ser o móvel que se tornou quase um mamarracho doméstico. Rainhas e avós tiveram psichés, agora eles moram nos afectos. Ou nas canções. Terceiro texto da série Objectos (quase) obsoletos em que olhamos para o que foi substituído, eliminado ou transformado nas casas portuguesas nas últimas décadas.

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Le Psyché (1876) Berthe Morisot

É uma palavra que não sai a bem da boca e que para umas duas gerações já nem é reconhecível - isso, só por si, é um sintoma da difícil história do psiché, ou pechiché na linguagem popular, um móvel que não é bem o que se pensa e que se tornou sinónimo de “nem pensar” quando toca a decorar uma casa. O psiché tornou-se um alvo a abater a partir dos anos 1980, mas cem anos antes era coisa de rainhas, aristocratas, burgueses e pintores impressionistas. Nos últimos anos foi a dor de Indiana Jones e a melancolia de Rui Veloso.

Falar em psiché é falar de quê? Normalmente redigido como “pechiché” - "psiché" e "pechiché" são ambas formas reconhecidas pelos dicionários, também lhe chamam "pchiché" ou mesmo "bichiché", corrupções da oralidade que talvez traduzam não só a invulgar raiz do nome correcto mas também o gradual desuso do objecto e da palavra correspondente. Já era atirado como insulto quando Herman José fazia as suas caricaturas da sociedade portuguesa e da obsessão com as aparências no pós-25 de Abril, sinónimo de algo obsoleto, exagerado e, no fundo, um mamarracho doméstico, piroso. Era uma antiguidade, mas não uma antiguidade que esperássemos ver num filme de Indiana Jones. 

Mas lá está ela, no cargueiro que resgata o arqueólogo e a sua parceira Marion numa cena dos Salteadores da Arca Perdida. Ele senta-se, exausto, num camarote em que Marion molha um trapo numa bacia de estanho e se vê num espelho oblongo com pés de madeira que lhe permitem rodar sobre si mesmo. De repente, fá-lo girar e bater na personagem Harrison Ford. Ele uiva. Acabara de ser atingido por uma espécie de psiché.

Momentos depois, ela comenta como ele já não é o homem que conhecera uma década antes. “Não são os anos, querida, é a quilometragem”, responde Indiana Jones. O psiché já fez muitas milhas desde o século XIX e é muitas coisas, nascido como um simples mas belo espelho reclinável apoiado em traves e base de madeira e encarado depois como sinónimo de toucador, de cómoda ornamentada e espelhada e até móvel inútil de hall de entrada. 

“Psiché refere-se em geral, lato sensu, a um espelho grande e muito decorado”, explica ao PÚBLICO Conceição Borges Sousa, a conservadora responsável pela colecção de mobiliário português do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA). É uma designação que surge no século XIX, detalha, e que a certa altura começa a ser também usado para designar um toucador ou até um aparador. “Há a confusão com o tremó – um espelho grande, e daí a ligação – [um móvel] que preenche um tramo, ou seja um espaço entre duas janelas ou portas, e a pouco e pouco vai-lhe sendo encostada uma mesa pequena, a mesa vai subindo e passa a ser um móvel único”, destrinça a conservadora do MNAA. O espelho é o elemento que contribui para essa contaminação a ideia do que é um psiché com outras tipologias de móveis. 

O seu nome conta uma história, o uso da palavra em Portugal conta outras. É uma história de vaidade e beleza da mulher e uma história de amor/ódio com o tradicional do Portugal que se queria modernizar dos anos 1980 em diante.

A princesa grega e o toucador

Em francês, e porque é uma peça que surgiu no estilo Império (final do século XVIII e que coincide com a era de Napoleão) chamam-lhe psyché, nome mais próximo da verdadeira responsável pelo fenómeno psiché - é em honra de Psiqué, a princesa humana de grande beleza que na mitologia grega encantou Eros, e cuja história consta das Metamorfoses de Apuleio. É uma história de enganos e mães divinas ciumentas e séculos de diferentes representações: os anos deram-lhe asas de borboleta na Grécia e a arte a capacidade de estar frente ao espelho, contemplando-se - é o exemplo da pintura de Berthe Morisot, chamada precisamente LePsyché (1876) - em inglês The Cheval-Glass ou The Psyche mirror -, residente do Museu Thyssen em Madrid. The Cheval-Glass é a designação do espelho psiché em inglês e a enciclopédia Britannica vem em nosso auxílio para explicar que Thomas Sheraton, no compêndio The Cabinet Dictionary (1803), o descrevia como um espelho com gavetas de um lado e de outro e uma espécie de mesa onde escrever. “O psiché pode ter uma gaveta, tem imensas variantes”, confirma Conceição Borges Sousa. 

A designer de interiores Marta Cunha confirma como a memória lhe devolve um psiché como sendo tanto um móvel com gavetas e sem possibilidade de assento, de quarto de senhora - “A minha avó tinha um [psiché] tríptico, em espelho, era mais baixo e era um móvel com quase dois metros” -, quanto um toucador. “Era para a senhora se ver ao espelho e se produzir dentro no quarto. No fundo era o momento da mulher moderna para poder tomar conta de si”, define a responsável pelo design de interiores da Ikea em Portugal. 

Alada ou miticamente bela, Psiché tornou-se no fundo num móvel associado à vaidade do utilizador e, pior, à falta de gosto e excesso do seu formato. “O termo ganhou outras conotações mais negativas: 'isto é um psiché'. Um psiché é uma coisa inútil, só decorativa, que não tem grandes funções”, resume Conceição Borges Sousa. Na segunda metade do século XX, os psichés faziam parte de um mundo em que as marcas e os nomes estrangeiros se confundiam com os objectos do dia-a-dia – era chamar-se Frigidaire ao frigorífico, como numa publicidade de 1966 à marca homónima, ou Philishave à máquina de barbear. As casas tinham escrivaninhas, naperons e camilhas e a certa altura queriam era ter bares de sala para substituir os psichés. 

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Na publicidade de uma água norte-americana, Psiqué é uma figura alada e sedutora

Há quase uma década, Fernanda Câncio escrevia na Notícias Magazine sobre os psichés, que mesmo escritos, como palavra, lhe pareciam estranhos, “tanto como os objectos que nomeiam, espécie de embirração linguística, cultural e estética de estimação”. Para a cronista, um psiché podia muito bem ser “uma espécie de mesinha alta rococó, não raro em talha dourada, geralmente com um espelho em cima, encontrada no hall de tantas casas”. 

O psiché era o que um português quisesse, fosse ele Fernando Campos no seu romance Psiché, passado entre as últimas décadas do século XIX e os anos 1950, ou Rui Veloso a cantar a melancolia de Carlos Tê em Bairro do Oriente: “Tenho junto ao psiché/Um grande cachimbo d'água/ Que sentados no canapé/Fumamos ao cair da mágoa”. A música está cheia de objectos vetustos, do astrolábio à lamparina, passando pelo transistor e pela “velha cornucópia”, o livro repleto de várias cenas ao psiché. Ambas as obras, sintomaticamente ou não, datam de 1980. 

Na linguagem de quem com eles conviveu, um psiché era um móvel antigo, herdado dos avós ou bisavós, e cuja presença nas casas portuguesas do final do século XIX e até meados do século XX teve várias fases. O século XIX em que nascem os espelhos chamados psiché “é o século de ouro da vida privada”, do “fecho da família em si própria”, como explica o historiador José Mattoso na sua colecção História da Vida Privada em Portugal. É também a era em que os móveis associados à higiene, que cada vez merece mais esmero, e mais banhos, se tornam mais populares.

Há psichés na colecção de mobiliário do Palácio Nacional da Pena, por exemplo, ilustrando os modos de habitar da família real portuguesa na segunda metade do século XIX. Mas só depois eles chegariam às classes médias mais altas, e muito depois às residências populares. O próprio espelho era uma raridade. “Durante a segunda metade do século XIX, o crescimento das classes médias urbanas contribui para um compreensível desejo de promoção social. Com os olhos postos na aristocracia, desenvolve-se uma cultura burguesa da aparência”, escreve Maria Helena Santana na História da Vida Privada em Portugal - A Época Contemporânea. “O próprio uso do espelho - à excepção do espelho minúsculo, vulgarizado pelos vendedores ambulantes - só lentamente se generalizará no espaço provinciano.” O psiché, um espelho de corpo inteiro e com madeira, não era para todos. 

O psiché esteve em voga na classe média nos anos 1920 ou 30, confirma Marta Cunha, rodeada de móveis novos para a apresentação de um catálogo Ikea. Mas hoje, “o termo não é usado. Se perguntarmos a uma rapariga de 25 anos, ela não sabe o que é um psiché”. Porquê? “Esses espelhos passam de funcionais a decorativos e começam a ser cada vez mais elaborados até que se articulam com um significado pejorativo”, diz Conceição Borges Sousa. “Foi com certeza pelo excesso decorativo, até que o móvel quase se tornou obsoleto - quase nem se via o espelho”, lembra a conservadora do MNAA. 

Há toucadores e espelhos de pé na loja sueca de mobiliário, mas nunca a designação psiché. Essa só resiste em certas lojas, como os tradicionais Móveis Vitória, ou a loja de produtos de outros tempos Sotão da Avó - e nos habituais classificados online. Marta Cunha arrisca que os psichés na sua versão toucador foram vítimas das dimensões das casas. “O espaço dos quartos passou a ser reduzido e levou-se essa actividade de maquilhar ou pentear para a casa de banho. Como peça, em termos dimensionais, é difícil [de usar] porque as pessoas vivem cada vez mais em cidades e as casas vão ser cada vez mais pequenas – o toucador se calhar é só para alguns.” Acrescenta, sobre as mulheres contemplativas ao espelho com pó de arroz e pinturas demoradas, que o acesso da mulher ao mercado de trabalho também pode ter contribuído para o recuar do psiché. A Enciclopédia Britânica é mais pragmática: “Quando os roupeiros passaram a ter espelhos, o psiché tornou-se desnecessário nos quartos”.

Hoje, o renovado e luxuosíssimo Ritz de Paris mantém a sua Sala Psyché, património classificado em homenagem à mítica beleza grega. Outras mulheres e outros hotéis são descritos por Rui Pelejão Marques numa reportagem sobre bordéis portugueses na Revista A23, onde mergulha num estabelecimento perto do Fundão em que ao balcão há “um poster do Sporting campeão (uma raridade), uma imagem da Nossa Senhora” e no quarto, 60 euros por uma hora com uma das profissionais, há “uma cama, uma pechiché e uma mesinha de cabeceira”. A internet ainda guarda resquícios do impacto do psiché na cultura material e oral portuguesa, com blogues baptizados em sua honra e do carácter privado e até confessional da memória do psiché (há por lá "As crónicas do pechiché", ou "Enquanto isso no meu pechiché").

Marta Cunha acredita que os psichés, sobretudo na acepção toucador, podem ser reutilizados, móveis antigos ganhando novos espaços na casa. Cantarola Bairro do Oriente, e redime um pouco desta reputação do psiché. Vê na voz de Rui Veloso “uma memória carinhosa - ele está a fumar o seu cachimbo ao psiché, não o vejo como pejorativo. O psiché traduz um ambiente mais boémio”.

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