O estranho caso do assassino de um só corno

Animal foi fotografado e o seu ADN analisado por suspeitas de ter morto idosa.

Foto
Miguel Feraso Cabral

Fosse na Idade Média, e o carneiro havia de ter respondido pelo homicídio da idosa em tribunal. Literalmente: nos tempos feudais a justiça humana também se aplicava aos animais, que chegavam a ser condenados à morte por juízes.

Mas apesar de não ter tido tal sorte, este bicho ficou com a reputação manchada para sempre no pequeno lugar da Fonte da Gatanha, no concelho de Viana do Castelo. Nem as palavras dos magistrados que o ilibaram dissiparam por completo a ideia de que a sua aparência bucólica escondia, afinal, uma personalidade violenta.

Fez há pouco tempo sete anos que Glória saiu de casa para ir visitar uma irmã. Nunca mais regressou. Apesar de não se saber de quem lhe quisesse mal, o marido encontrou-a já sem vida a duas centenas de metros do local onde moravam, num caminho rural chamado Rego. O que aconteceu mais ninguém presenciou senão a malograda vítima. E as ovelhas, talvez. Ao certo sabe-se que quem a matou não lhe roubou os valiosos pertences que trazia consigo e que apresentava lesões ao nível do abdómen e do tórax. Ter-se-á cruzado com o rebanho e sido atacada pelo macho.

As autoridades não se pouparam a esforços para deslindar o mistério. Ele foram testes de ADN ao corno, à cabeça e ao focinho do animal, a quem já faltava um dos chifres, ele foram fotos ao dito suspeito. As peritagens biológicas ficaram a cargo do Instituto de Medicina Legal, cujos técnicos se muniram de zaragatoas para recolher provas que permitissem incriminar o animal. Ou melhor, os seus donos, a quem os familiares da idosa exigiam 64 mil euros. Além de já não ter corno esquerdo, ao carneiro restava apenas uma pequena parte do corno direito. Teria sido mesmo às suas marradas que tinha sucumbido a idosa?

Não havia mais nenhum rebanho com carneiros e ovelhas nas redondezas, alegaram os seus familiares. Uma sobrinha da falecida garantiu até ter sido assediada pelo dito animal naquele mesmo dia. Um primo seu corroborou-o, dizendo ter sido obrigado a protegê-la “da actuação agressiva da besta”.

"Apareceu desenfreado na altura em que eu andava à procura da minha tia", descreveu a sobrinha, queixando-se de ter sido atacada nas pernas.

A septuagenária terá invadido, sem se aperceber, um caminho que o animal considerava seu por direito, apostou a acusação: “Um carneiro que se encontra a desempenhar a função de cobrir as suas ovelhas, como era o caso, é um protector absoluto do território onde elas se encontram, não permitindo que estranhos o invadam”.

Até a Polícia Judiciária entrou em campo. Uma dupla de inspectores foi a tribunal explicar como tinha “direccionado a sua investigação para o carneiro”. Também para eles não pareciam subsistir grandes dúvidas: “Estamos a falar de um trabalho feito em 4 ou 5 horas em que nós analisámos com atenção a vítima, analisámos com atenção o cenário, ouvimos as várias pessoas. Fomos ao carneiro e constatámos que o tipo de lesão da vítima era consentâneo com aquele corno”.

A Fonte da Gatanha, que nunca tinha sido notícia por coisíssima nenhuma, viu-se catapultada para as páginas dos jornais nacionais. Se o suspeito estava isento de culpas, como raio tinham aparecido na sua mão esquerda (na pata, na verdade) vestígios de um perfil genético feminino incompleto idêntico ao do sangue do cadáver? – questionaram os descendentes da idosa.

O carneiro acabou por ser absolvido em primeira instância. Inconformados, os queixosos recorreram para o Tribunal da Relação de Guimarães. Que, em vez de solucionar de uma vez por todas o mistério, só o adensou. O marido da vítima tinha entretanto morrido, mas as declarações que prestara à justiça revelaram-se cruciais: jurava não reconhecer o carneiro fotografado pelas autoridades.

Uma afirmação que os juízes desembargadores consideraram estranha. No passado mês de Maio acabaram por se ver obrigados a reconhecer de uma vez por todas a sua impotência perante certos enigmas da natureza: “Não existe (…) sustento para imputar ao dito carneiro ou a outro qualquer (…) a acção causal das lesões” que mataram Glória, escreveram. 

Afinal, toda a azáfama em redor do bicho de um chifre só revelara-se inútil. Porque carneiros há muitos.

Sugerir correcção
Comentar