Esta América não é um filme

Num momento em que os EUA se fecham sobre si, os Encontros de Fotografia de Arles provocam a reflexão com o ciclo America great again! À boleia dos 60 anos da publicação do poema visual The Americans, de Robert Frank, cinco exposições de autores “estrangeiros” ensaiam o que pode ser toda a América

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Paul Graham, Nova Orleães, da série a shimmer of possibility, 2003-2006. Cortesia Pace/MacGill Gallery, Nova Iorque; Carlier | Gebauer, Berlim; Anthony Reynolds Gallery, Londres

A imagem vem de um dos “melhores capítulos” de Moby Dick, de Herman Melville, e foi dada por Paul Graham ao Libération como metáfora sobre o que é estar na América, como ele está desde 2002. Dentro da barriga da besta refere-se ao sentimento de ter sido engolido por um “ser” tão indizível quanto indomável, uma “entidade” tão mastodôntica quanto complexa; um cosmos e um caos que se movimentam num labirinto sem centro, para usar outra imagem, desta vez do escritor Jorge Luis Borges para definir a tensão irresolúvel e em crescendo que percorre “página a página” Moby Dick, mas que aqui também se pode colar à marcha errática de um país enleado nos seus medos, esbracejante, desnorteado.

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Raymond Depardon, Manhattan, Nova Iorque, 1981. Cortesia Raymond Depardon/Magnum Photos

A brancura da baleia que no tal capítulo aterrorizava Ismael, o narrador da obra-prima de Melville, é também o título da trilogia que o artista inglês apresenta este ano nos Encontros de Arles, naquela que é uma das melhores exposições do festival, um vislumbre sereno sobre as profundas contradições que marcam o quotidiano das muitas Américas que co-existem, tantas vezes lado a lado, sem nunca se cruzarem. São Américas dentro de uma América que nas fotografias de Graham parece um lugar cada vez mais alienado, um mundo ligado por uma teia de referências frugais, de reflexos condicionados e mensagens subliminares – os dog whistle do jargão inglês, como o já célebre e ainda fresco Make America great again!, de que os Encontros se apoderaram para uma pequena provocação, subtraindo-lhe o “make”.  

A ironia é fina, mas está lá. Sem o verbo, a carga propagandística arrebanhadora do slogan fica enfraquecida e quem ganha é a ambiguidade. Embora exista também grandiloquência, símbolos de poder e algo que lembra o american way of life como um produto de sucesso, a grande maioria das imagens das cinco exposições alinhadas no ciclo America great again! mostra o lado B do país, as margens, os pequenos nadas e, sobretudo, os desequilíbrios sociais e a discriminação — entre outras, a racial — como fonte permanente de tensão, um estado de nervos colectivo. Embora abarcando um arco de seis décadas, estes cinco olhares podem ser entendidos também como um diagnóstico actualizado tanto das feridas que estão por sarar, como daquelas que, entretanto, foram sendo abertas.

À boleia dos 60 anos da publicação do seminal The Americans (Delpire, 1958), de Robert Frank (Zurique, 1924), o director artístico dos Encontros, Sam Stourdzé, meteu no carro mais quatro viajantes com olhares “estrangeiros” sobre o país, Raymond Depardon, Paul Graham, Taysir Batniji, Laura Henno, num critério que não deixa de ter uma carga provocadora face a tudo o que tem sido o discurso anti-imigração da presidência de Donald Trump. É uma escolha tão diversificada quanto certeira, na medida em que convoca alguns dos olhares mais familiares da imagética ligada aos EUA (Frank, Depardon); como outros menos conhecidos, mas igualmente empenhados nas profundezas (Graham); ou ainda os que, mais recentemente, se dedicaram a investigar a singularidade de certas comunidades (Batniji, Henno). Os ingredientes deste caldeirão formam um retrato denso e informado, um panorama que nos demonstra como são fundamentais os olhares dos outros sobre nós.

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Taysir Batniji, Yasmine Batniji, Newport Coast (Califórnia), da série Adam, 2017. Cortesia do artista e da Galeria Beirut/Hamburg

Qualquer país, espaço ou comunidade precisa do confronto com a imagem que dela fazem os que chegam de fora. E se houver disponibilidade para um olhar sobre si pelos olhos dos outros, é muito provável que se descubram os pormenores mais profundos, os traços menos óbvios, os sinais mais mitigados, “ainda que esse olhar possa devolver coisas que queremos esquecer, ou o que ficou gravado no lado sombrio da memória”. “Muitas vezes os visitantes reflectem a imagem que nos esforçamos por construir, o atavismo mais enraizado. Outras vezes, no entanto, conseguem que a idiossincrasia do seu olhar revele o que, pela proximidade, não vemos.” (Delfim Sardo)

Sam Stourdzé não esconde a alfinetada: “Neste período de retrocesso [nos EUA], convém mostrar que os estrangeiros também ajudaram a moldar a imagem do país.” A sequência de exposições America great again! é reveladora de uma postura atenta e activa da liderança artística de Stourdzé que nos últimos anos tem sabido olhar para o desenrolar dos acontecimentos mais imediatos de uma forma crítica, propondo pela via da imagem fotográfica pistas para descodificar e melhor compreender os dias que correm.

O “estrangeiro” americano da América

O sentimento de ambiguidade em que se move alguém que muda de um país para outro, ou mais simplesmente a condição de estrangeiro num lugar que se habita, terão sido parte do combustível para a determinação e curiosidade sem preconceitos com que Robert Frank partiu para retratar a América e os americanos. Quis descobrir “como eles vivem no presente”, o “seu quotidiano e os seus domingos, o seu pragmatismo e os seus sonhos, a aparência das cidades, vilas e estradas”, desejos que de tão simples, e depois de termos visto toda a sensibilidade poética que passou para The Americans, ressoa hoje desconcertante.

Em Home Improvements (1985, espécie de confessionário filmado sobre os momentos mais marcantes da sua vida), Frank observou que, nesse tempo, “olhando de fora, tentava olhar para dentro – tentava dizer algo que fosse verdade”, postura que coincide com a arrumação do célebre fotolivro como tendo sido realizado por um “verdadeiro estranho”, isto num país que percorreu de uma ponta à outra, entre 1955 e 1956. Certo é que esse entendimento que por vezes é acenado como uma bandeira para afirmar posicionamentos políticos mais eufóricos ou para servir interesses como os que a Suíça (de onde Frank é originário) tem nos Encontros de Arles (para além da França, é um dos países mais representados ano após ano) tem sido posto em causa. Por exemplo por Sarah Greennough, curadora de fotografia da National Gallery of Art, Washington, que, por ocasião do 50.º aniversário de The Americans sustentou que nos EUA “Frank era simultaneamente um estrangeiro e um não-estrangeiro, privado do seu tempo e da sua cultura, mas a mesmo tempo parte dela”. Mais: para Greennough, a obra-prima de Frank é o resultado “de uma fusão da Europa e da América”, especificamente das vanguardas artísticas do pós-guerra que foram surgindo dos dois lados do Atlântico (existencialismo, expressionismo abstracto, literatura beat, pop art…).

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Robert Frank, New York City, 1951-55. Colecção Fotostiftung Schweiz, Winterthur

Se hoje se olha para Robert Frank dos anos 1950 afinal como “um americano”, à época da publicação de The Americans as críticas foram ferozes e vieram alimentadas pela raiva de ver um “estrangeiro” a mostrar imagens de “ódio e desespero”. Ou seja, aquilo que, na verdade, nunca fora mostrado de uma forma tão funda e intuitiva. Robert Frank rasgou as cortinas que tapavam um país que muitos sabiam que existia, mas que poucos conheciam, revelou uma cultura profundamente crivada pelo racismo, alienação e isolamento, onde pontuavam políticos messiânicos e profetas do consumismo e da fé, nacionalismo, falsa piedade e corrupção política. Ao mesmo tempo, Frank quis também transmitir-nos o seu encantamento pela superfície brilhante de uma jukebox ou a sua emoção perante a beleza de uma cadeira solitária numa barbearia fechada. Uma poética do quotidiano que não aplacou críticos como Bruce Downes: “Frank é um mentiroso, perversamente celebrando a miséria que perpetuamente procura e obstinado cria.”  

Para lá do incómodo com o lado sombrio e decadente do “sonho americano”, o livro enfureceu também os puritanos que não gostaram de ver debaixo do título The Americans negros, índios e marginalizados.

O que se pode ver em Arles em Sidelines, exposição comissariada pelo suíço Martin Gasser, é muito do percurso fotográfico de Robert Frank até chegar a The Americans, livro-farol que “não foi fruto de um súbito golpe de génio", mas, sim, de “uma sólida formação ao lado de fotógrafos extraordinários [entre outros, Gotthard Schuh e Jakob Tuggener], depois de um enorme trabalho e também de muita intuição e perseverança”. Na primeira parte, os passos iniciais na procura de uma forma de exprimir “verdades subjectivas”, seguindo-se uma vasta selecção de fotografias mais poéticas que Frank tirou por toda a Europa antes da sua primeira estadia em Nova Iorque (1947), e que deixaria plasmadas na maquete de Black White and Things (1952), que como Peru (1949), também em maquete, constituem a génese da mestria da mise en page de Frank, uma construção ritmada, interligada, por vezes dissonante, outras harmoniosa. No meio das salas, as muitas provas de contacto que deram origem ao livro permitem apreciar as escolhas do artista, numa espécie de espreitadela por cima do ombro. Na segunda parte, há muitas imagens até agora desconhecidas do grande público, que foram realizadas na primeira metade dos anos 1950 e que são agora colocadas no seu contexto original, entre uma selecção de algumas das fotografias mais célebres de The Americans, que mais do que um documento literal da América, pode ser lido como uma ode ou um poema.

Os primos da América

Entre todas as exposições de America great again! a que nos dá o olhar mais deslumbrado e embevecido pelo país é Depardon USA, 1968-1999, que reúne pela primeira vez o corpo de trabalho que o francês Raymond Depardon (Villefranche-sur-saône, 1942) realizou nas inúmeras viagens e estadias no país. A relação traçada no espaço Van Gogh começa com a cobertura da Convenção Nacional Democrata e de uma manifestação contra a Guerra da Vietname em Illinois, Chicago, em 1968, quando o fotojornalismo ainda mantinha a sua força no panorama mediático, e prolonga-se até 1999, quando Depardon decide dar uma guinada na sua abordagem fotográfica assumindo a errância como parceiro de viagem.

Num campo criativo distante do de Depardon, o inglês Paul Graham (Stafford, 1956) – “um farol na fotografia contemporânea” – propõe uma abordagem entre o documentalismo e o conceptualismo para uma aproximação aparentemente tímida a um território por onde deambula uma sociedade entre o individualista, o anestesiado e o alheado. Do tríptico informal La Blancheur de la Balene fazem parte American Night (1998-2002), a shimer of possibility (2004-2006) e The Present (2009-2011), onde se aborda a injustiça social e racial, a textura do quotidiano, a natureza da visão, da percepção e da própria fotografia enquanto suporte criativo.

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Paul Graham, 8th Avenue & 42nd Street, 17th August 2010, 11.23.03 am, da série the Present, 2010. Cortesia Pace/MacGill Gallery, Nova Iorque

O palestiniano Taysir Batniji (1996), a viver em França depois de, em 2006, lhe ter sido negado o regresso à Faixa de Gaza, onde nasceu e cresceu, apresenta Gaza to America, Home Away from Home, retrato da vida de sucesso de seis primos que se instalaram nos EUA durante os anos 60. É uma das (boas) surpresas destes Encontros, um trabalho profundo e sensível que, através do vídeo, da fotografia e do desenho, analisa o desenraizamento, a construção de identidade, o sentimento de pertença, a memória, a impermanência, a nostalgia e a itinerância. Em paralelo a esta exposição, pode ver-se ainda uma retrospectiva selectiva da sua obra, realizada entre 1999 e 2012, onde o conflito israelo-palestiniano reclama boa parte das séries apresentadas.

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Laura Henno, Mariane et Jack-Jack, Slab City (EUA), 2017. Cortesia da artista e da galeria Les Filles du Calvaire, Paris

A luz dourada da hora mágica marca as imagens da francesa Laura Henno (Croix, 1976) em Redemption, dando-lhes uma estranha sensação de conforto e até de algum romantismo. Mas quanto mais se fica a olhar para estes retratos de gente que se entregou a uma vivência árida e desprotegida, mais essa luz cintilante mingua e se transforma em cores pálidas, espelho, aliás, do ar resignado com que algumas das cerca de 300 pessoas deambulam por Slab City, a cidade perdida no coração do deserto da Califórnia, emblema de uma América reduzida a um lendário acampamento de marginalizados. Inspirada pelo documentário Below Sea Level (2008), do italiano Gianfranco Rosi, Henno passou dois meses de 2017 a viver numa caravana em Slab City, onde observou esta comunidade que parece decidida a contrariar clichés condenatórios e a lutar por um futuro melhor, enquanto líderes como o pastor evangélico Dave vai prometendo a redenção nas récitas pronunciadas num templo de materiais esvoaçantes e esfarrapados.

Para além da luz quente que vai arrefecendo, à medida que percorremos estas imagens temos a sensação de estar perante figurantes, personagens de filmes de aventuras como Mad Max. Até que vemos crianças descalças no cascalho, olhar perdido e com feridas no nariz.

A América – esta América – não é um filme. É verdade.