Regime de Assad assume pela primeira vez a morte de pessoas que fez desaparecer

Famílias sírias têm sido informadas que os seus parentes, desaparecidos há anos, morreram na prisão. Estas revelações são também uma forma de Bashar al-Assad dizer que a guerra terminou e que a vitória é sua.

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Khaled al-Hariri/REUTERS

Há muito que várias organizações vinham denunciando que muitos milhares de pessoas desapareceram às mãos das forças de segurança de Damasco, desde que, em 2011, se iniciou uma revolta contra Bashar al-Assad que se transformou numa sangrenta guerra civil que se estende até hoje. Agora, o regime sírio começou a confirmar os piores receios: muitos desses desaparecidos morreram, e há vários anos.

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Há muito que várias organizações vinham denunciando que muitos milhares de pessoas desapareceram às mãos das forças de segurança de Damasco, desde que, em 2011, se iniciou uma revolta contra Bashar al-Assad que se transformou numa sangrenta guerra civil que se estende até hoje. Agora, o regime sírio começou a confirmar os piores receios: muitos desses desaparecidos morreram, e há vários anos.

Amina al-Khoulani tentava há seis anos descobrir o paradeiro dos seus irmãos, Majd e Abdelsattar, que foram colocados numa prisão militar próxima de Damasco logo no início do conflito. Na semana passada, Amina foi informada que ambos morreram em 2013.

“Nós ouvimos muitos relatos de que eles tinham sido executados. Sabemos que o regime é criminoso e é capaz de fazer isso mas nunca perdemos a esperança de que seja mentira”, disse à Reuters Amina, que é agora uma refugiada no Reino Unido.

Têm surgido nas últimas semanas vários relatos do género. Centenas de famílias sírias têm procurado conhecer o paradeiro dos seus parentes desaparecidos junto das instituições governamentais. Agora, ao contrário do que aconteceu até aqui, o regime de Assad tem confirmado que muitos deles morreram.

O Governo de Damasco não comentou ainda publicamente esta situação, e segundo as informações que têm sido recolhidas pelos media internacionais, a única coisa que tem sido transmitida à família é a data da respectiva morte. Ou seja, não se sabe quantas pessoas foram informadas nem como ocorreram as mortes.

Um novo tipo de dor

A Rede Síria para os Direitos Humanos (SNHR, na sigla em inglês), que tem documentado a guerra na Síria a partir do estrangeiro, registou pelo menos 532 casos de pessoas desaparecidas que foram entretanto listadas como mortas pelo regime nos últimos meses. Nenhuma das famílias tinha sido anteriormente informada. A Amnistia Internacional diz que Damasco confirmou até agora a morte de 161 pessoas.

“Muitas famílias sírias estão a enfrentar um novo tipo de dor. Durante anos sofreram a insuportável agonia de não saber o que tinha acontecido aos seus parentes desaparecidos. Agora receberam a confirmação devastadora de que os seus entes queridos estão mortos”, diz Diana Semaan, investigadora da Amnistia Internacional para a Síria.

“O Governo sírio tem de devolver imediatamente os restos mortais destas vítimas às suas famílias para permitir enterros e funerais adequados, e informar os seus parentes sobre as circunstâncias dos seus desaparecimentos forçados e das suas mortes”, diz.

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Protesto contra assad em Kafranbel, perto de Idlib, em 2012, ainda no início da guerra REUTERS

Semann calcula ainda que “pelo menos 82.000 pessoas foram sujeitas a desaparecimentos forçados desde o início do conflito”.

A SNHR aponta a números maiores, afirmando que mais de 104 mil pessoas foram detidas ou desapareceram às mãos das forças de Damasco. Calcula-se que 90% destas vítimas foram colocadas nas prisões do regime de Assad, que há muito foram denunciadas como verdadeiras máquinas de tortura e execuções sumárias.

Nos últimos anos, várias organizações têm denunciado que dezenas de milhares de pessoas foram detidas sendo depois torturadas e executadas nas prisões controladas pelo regime. Por exemplo, em 2017, a Amnistia Internacional divulgou um extenso relatório onde dizia que, desde 2011, Damasco lançou uma campanha para “deter e fazer desaparecer pessoas”.

“Milhares foram torturados ou maltratados de outras formas, muitos morreram nas prisões, e dezenas de milhares desapareceram forçosamente”, denunciava a organização, acrescentando que o regime tinha como alvos prioritários “activistas políticos, defensores de direitos humanos, jornalistas, médicos e voluntários de ajuda humanitária”.

O Washington Post teve acesso a alguns documentos do Governo a informar as famílias da morte dos seus parentes e diz que, na sua maioria, morreram entre 2013 e 2015. Os restos mortais não foram entregues nem foi revelado o local onde foram enterrados. Alguns grupos de monitorização na Síria afirmam que algumas notificações foram redigidas em tribunais militares durante a noite, o que sugere que os prisioneiros foram executados.

Confiante

O facto de o regime ter começado a divulgar o destino destas pessoas desaparecidas indica outra coisa: Assad está plenamente confiante na vitória total na longa e sangrenta guerra civil, depois de significativos triunfos sobre os rebeldes armados desde que a Rússia se juntou a Damasco no conflito, pelo que o receio de repercussões por este tipo de actuação se desvaneceu.

“O regime está a fechar um capítulo e a começar um novo”, diz ao New York Times, Emile Hokayem, analista do Médio Oriente para o International Institute for Strategic Studies. “Está a dizer aos rebeldes e activistas que o seu capítulo acabou, que qualquer esperança na sobrevivência do espírito revolucionário foi destruída”.

Saysal Itani, membro do Centro Rafik Hariri para o Médio Oriente, afirma ao Washington Post que a mensagem de Assad é a de que “a guerra nunca aconteceu, o regime está de regresso à acção, e tudo será processado através do sistema [burocrático]”. “Penso que a palavra que melhor encapsula isto é ‘normalização’ – a versão síria dela, de qualquer das formas”.