Os furos que nos andam a escapar

Vem aí o fim da legislatura, e seria essencial uma esquerda que soubesse olhar para o futuro. Travar o furo de Aljezur e votar contra os autoritarismos de Orbán e Kaczinski seria o mínimo dos mínimos para cumprir com esse desafio.

Os meses de Verão são sempre assim: falsos lentos. Na verdade as notícias sucedem-se tão rapidamente que com facilidade nos escapam os furos, no sentido jornalístico do termo como “achados". A crónica de hoje é dedicada a dois deles.

O primeiro furo é um furo literal: o furo para prospeção petrolífera em Aljezur. Enquanto estávamos ocupados com outras notícias, o primeiro-ministro foi a um talk-show na RTP e disse que “esperava que sim”, que o furo em Aljezur fosse para avançar, “apesar de todos os protestos”.

Esta é uma notícia demasiado importante para deixar que ela se evapore com o calor da semana que aí vem. Não só porque os milhares de pessoas que vivem na Costa Vicentina, e os muitos mais milhares que para lá vão sazonalmente, querem certamente saber se é este o último ano em que a costa ocidental algarvia e alentejana está livre do perigo de um derrame do tipo daquele que em 2010 poluiu o Golfo do México com uma descarga equivalente a cerca de 5 milhões de barris de petróleo. Alguns de nós preocupam-se com o facto de este tipo de prospeção estar a ser feita numa zona de risco sísmico. Mas a questão da prospeção de petróleo vai ainda para lá destas preocupações.

A realização deste furo põe Portugal perante uma escolha. O país pode escolher as energias do passado, que são os combustíveis fósseis. Ou o país escolhe concentrar-se nas energias do futuro, que são as renováveis, e na economia do futuro, que passa também pelo fundo do mar, desde as fontes geotérmicas até às indústrias biotecnológicas. Ora, se essa é uma escolha crucial para o futuro, ela não pode ser feita assim num fim de legislatura sem verdadeiro debate político. O país vai novamente para eleições no próximo ano. Então que nessas eleições finalmente seja discutido este tema com posições claras por parte de cada partido. E que pelo menos até às eleições se suspenda qualquer prospeção petrolífera, para que os portugueses possam decidir se querem ir por este caminho ou não. O furo de Aljezur pode esperar. A democracia não.

O segundo furo que nos está a escapar vem com a recente entrevista do número 2 do governo, o Ministro dos Negócios Estrangeiros Augusto Santos Silva, na qual este governante identifica — corretamente — as eleições europeias do próximo ano como sendo cruciais para a Europa e o mundo na próxima década. A razão que Augusto Santos Silva aponta para que estas eleições sejam tão importantes é — também corretamente — o crescimento da vaga nacional-populista no mundo.

Ora, se ambas as análises estão corretas, o que é de esperar é que o governo português, e a maioria parlamentar que o apoia, saibam agir em conformidade. O mesmo se depreende do debate com os cidadãos que tiveram há poucos dias em Lisboa o primeiro-ministro António Costa e o presidente francês Emmanuel Macron. Nesse debate a prioridade mais votada pelos cidadãos foi a reforma institucional da União Europeia — ou seja, a democratização da UE — e a pergunta mais votada era muito simples: “pode a União Europeia aceitar no seu seio países que violam os seus valores e princípios?”. A resposta de António Costa foi também simples e taxativa: “não, não pode” — após o que se seguiu o maior aplauso da plateia. Se estamos então todos de acordo que a democratização da UE e a democracia nos estados-membros são condições inegociáveis do projeto europeu, a pergunta que se segue é: que está Portugal disposto a fazer para defender esses valores?

É sabido que neste momento a Comissão Europeia e o Parlamento Europeu identificam entorses sistemáticos ao estado de direito e aos direitos fundamentais em dois países da UE: a Hungria e a Polónia. Até agora nada se fez para defender os valores consagrados nos tratados da União por uma razão simples: porque os governos nacionais no Conselho da UE nada quiseram fazer. Mas em breve essa opção de nada fazer não estará mais em cima da mesa, porque vêm aí votos na Comissão e no Parlamento que vão forçar o Conselho a ter de decidir se aplica ou não o artigo 7 que o Tratado de Lisboa prevê para os casos em que haja uma violação séria e reiterada dos valores fundamentais da União. Não quero que me passe sequer pela cabeça Portugal fazer outra coisa senão votar a favor de ativar exemplarmente esse artigo para combater a deriva autoritária na Hungria e na Polónia. Mas a verdade é que até agora o governo ainda não disse o que faria. Vai Portugal estar do lado dos valores fundamentais da UE, votando o artigo 7, ou transigir com populistas como Orbán e Kaczisnki? Em matérias destas, é essencial ser, desde já, claro e preciso.

Aqui há uns tempos, quando Augusto Santos Silva disse que seria importante que a geringonça convergisse também em temas europeus e internacionais, houve uma espécie de bruááá generalizado considerando que pôr a Europa na equação da geringonça é a mesma coisa que querer que a geringonça não continue. Isso seria só o caso se estivéssemos apenas a falar de uma parte da Europa. Seria assim tão impossível pôr a geringonça de acordo sobre Schengen, refugiados ou precisamente a questão da Hungria e da Polónia? O facto é que nem BE nem PCP se pronunciam sobre tais temas, talvez por temerem que a palavra “Europa” lhes queime os lábios.

Eis assim reunidos os dois tristes furos deste governo e desta maioria: a ecologia e a Europa. Agora “furos” não entendidos como achados, mas no outro sentido da palavra: como buracos ou espaços vazios, onde nada se diz ou projeta. Vem aí o fim da legislatura, e seria essencial uma esquerda que soubesse olhar para o futuro. Travar o furo de Aljezur e votar contra os autoritarismos de Orbán e Kaczinski seria o mínimo dos mínimos para cumprir com esse desafio.

Nota: na próxima sexta-feira comemoram-se 50 anos sobre a data em que Salazar caiu da cadeira, e esta coluna assinalará esse mesmo dia entrando de férias, e regressando apenas a 13 de agosto.

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