Como a impressão de armas 3D se tornou uma guerra sem fim nos EUA

Um juiz de Seattle bloqueou temporariamente a distribuição de um manual de instruções para fabricar armas através de uma impressora 3D, que o Departamento de Estado americano havia autorizado na semana passada. Mas a batalha jurídica, que dura há anos, não vai ficar por aqui.

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Cody Wilson com um dos tipos de arma que é possível imprimir Defense Distribuited

Há anos que Cody Wilson, anarquista e acérrimo defensor dos direitos de posse de armas, trava uma batalha legal para poder distribuir códigos, ficheiros e instruções para a produção caseira de armas através de impressão 3D. Agora, depois de Wilson ter recebido luz verde do Departamento de Estado norte-americano, um juiz de Seattle suspendeu a publicação das instruções. Mas o processo está longe de encerrado.

A batalha pela distribuição das instruções online começou em 2013 quando Wilson, fundador da organização sem fins lucrativos Defense Distributed, na altura com 25 anos, conseguiu produzir pela primeira vez com sucesso uma pistola através de uma impressora 3D. Perante o feito, publicou as instruções num site de partilha de ficheiros e, em pouco dias, registaram-se mais de 400 mil downloads.

O Governo, então dirigido por Barack Obama, argumentou que o descarregamento destes manuais na Internet constituía uma exportação não autorizada de tecnologia militar e de defesa, o que viola a lei federal conhecida como International Traffic in Arms Regulations (ITAR), ordenando o fim da disseminação desta informação.

Wilson processou o Governo, iniciando uma batalha legal que se prolonga até agora.

Na sexta-feira, 29 de Julho, o Departamento de Estado norte-americano surpreendeu toda a gente e chegou a acordo com o dono da Defense Distributed, autorizando a distribuição online do manual de fabrico de armas caseiras. Aacordou, inclusivamente, o pagamento de 40.000 dólares (mais de 34.000 euros) de compensação pelas despesas legais.

A distribuição ficava assim autorizada a partir de dia 1 de Agosto, esta quarta-feira. Porém, o caso conheceu outro volte-face na segunda-feira.

Preocupações

A perspectiva de uma distribuição legal das instruções para este tipo de armas levantou uma série de preocupações. Em primeiro lugar, devido à facilidade de produção. Em segundo, está o facto de estas armas serem indetectáveis pelas autoridades, por não terem qualquer número de série. Além disso, por serem de plástico (polímeros), não são identificáveis na maioria dos detectores de metais. Isto faz com que sejam apelidadas de “armas fantasma”.

Para além dos argumentos jurídicos apresentados em tribunal, a Defense Distributed argumenta que a produção de armas não se generalizaria, pois a maioria das pessoas não tem a capacidade financeira para adquirir uma impressora 3D.

“Nunca vi nenhum crime ser cometido com estas armas”, afirmou Wilson em entrevista à BBC. “Pelo que sei, só uma pessoa foi detida por causa destas armas e foi um senhor no Japão que estava curioso sobre como o fazer”.

Bloqueio até dia 10

A verdade é que na segunda-feira os procuradores de oito estados americanos apresentaram um processo contra o Governo por causa do acordo com Wilson.

Depois de uma audiência de uma hora em que ouviu os argumentos de ambas as partes, o juiz Robert Lasnik, de Seattle, decidiu bloquear novamente a publicação das instruções a nível nacional e temporariamente.

“Há impressoras 3D em colégios públicos e espaços públicos e há probabilidade de existirem danos potencialmente irreparáveis”, justificou Lasnik, contrariando um dos principais argumentos da Defense Distributed.

Juridicamente, Wilson sustenta-se na Primeira Emenda da Constituição norte-americana que assegura, entre outras coisas, a liberdade de expressão. Ou seja, argumenta que o que está em causa é o direito a propagar informação, e não armas propriamente ditas.

Lasnik concorda que existem “assuntos sérios relativos à Primeira Emenda” que devem ser considerados, pelo que agendou uma nova audiência para dia 10 de Agosto. Até lá, a publicação das informações fica proibida.

“A lei é clara”, reagiu Wilson. “Os queixosos simplesmente não têm legitimidade para contestar o acordo. Não se pode reabrir um assunto que está federalmente fechado. E eu considero o assunto fechado”.

Esta ordem judicial não foi a tempo de evitar que entre sexta-feira e domingo fossem descarregados mais de mil ficheiros com guias e códigos para produção de armas de plástico.

Um tema que divide

O facto de a aquisição destas armas de plástico não necessitar de uma verificação de antecedentes divide até os defensores do direito de posse de armas nos Estados Unidos.

“Este pode ser uma dos primeiros problemas a surgir que representa uma divisão entre dois grupos que são muito vocais no seu apoio a Trump”, diz ao New York Times, Timothy D. Lutton, professor de Direito na Universidade da Georgia. “Os entusiastas das armas são geralmente a favor de algum tipo de sistema de verificação de antecedentes, da lei e da ordem – eles não querem um passe-livre para que todos possam obter armas, ao contrário dos anarquistas”.

O Presidente americano, Donald Trump, recorreu inclusivamente ao Twitter nesta terça-feira para criticar a decisão da sua própria Administração: "Estou a olhar para [o tema de] as armas de plástico 3D que se vendem ao público. Já falei com a NRA (Associação Nacional de Armas), não parece fazer muito sentido!".

Hogan Digley, porta-voz da Casa Branca, disse também que é ilegal “possuir ou produzir uma arma inteiramente de plástico, de qualquer tipo, incluindo as feitas numa impressora 3D”, referindo-se a uma lei dos anos 1980 que proíbe armas totalmente de plástico e que sejam indetectáveis.

“Independentemente do que uma pessoa possa publicar na Internet, as armas de plástico indetectáveis são ilegais há 30 anos”, disse Chris Cox, director executivo da NRA, em comunicado citado pela Reuters.

Os manuais distribuídos pela Defense Distributed permitem criar uma gama de armas que vai desde a chamada Liberator (uma pequena pistola de plástico e que foi a primeira alguma vez criada pela empresa), uma arma do estilo AR-15 (versão semiautomática da M-16), ou uma pistola completa do tipo Beretta M9 (arma secundária oficial das Forças Armadas norte-americanas). Ao todo, a organização tem instruções para criar nove modelos de armas.

O cripto-anarquista

Wilson nasceu em 1988, no Arkansas, e desde cedo se tornou uma figura controversa nos EUA. Especialmente desde que, em 2013, anunciou que tinha conseguido fabricar uma arma letal através de uma impressora 3D.

Nesse ano, lançando também um site onde publicaria as instruções de fabrico de armas caseiras, Wilson divulgou um vídeo onde declarava o início de uma nova era no controlo de armas nos EUA. “A Era das armas descarregáveis começa formalmente”, como ainda hoje se lê no site da Defense Distributed.

Auto-intitulando-se cripto-anarquista, anarquista do mercado livre e activista pelos direitos à posse de armas, foi classificado, logo em 2012, pela revista Wired como uma das 15 pessoas mais perigosas do mundo. Três anos depois, em 2015, a mesma publicação incluiu-o na lista das cinco pessoas mais perigosas da Internet.

Depois de anos de batalha jurídica e de consecutivas derrotas, Wilson não dá indicações de querer desistir. O Washington Post diz mesmo, num editorial, que “as armas imprimidas a 3D põem a carnificina à distância de um clique”.

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