Formosa e não segura

Como diria Mark Twain, as notícias do enfraquecimento de Catarina Martins são manifestamente exageradas.

Sejamos claros: do que se conhece até ao momento, de um estrito prisma jurídico, nada existe de ilegal na actuação de Ricardo Robles. Por outro lado, já em análise política, nada obriga a que quem se reivindica de esquerda não tenha dinheiro. A imagem de uma mulher ou homem de esquerda proletário descamisado, quase a viver debaixo da ponte é uma caricatura de uma certa direita trauliteira. Nem mesmo a Bíblia critica a propriedade e os bens materiais em si mesmo considerados. A célebre parábola de um camelo passar pelo buraco de uma agulha (Mt. 19,24) apenas significa, aqui, que os bens mundanos são evidentemente necessários a um qualquer projecto político, de direita ou de esquerda.

Robles soube – ou teve de – sair de cena, nenhuma outra alternativa lhe restando. Politicamente condenável é a incoerência. Essa paga-se caro e mesmo com a memória em geral curta do eleitorado, deixa marcas. O Bloco de Esquerda (BE) há muito é crismado de “esquerda caviar” ou “punhos de renda”, com os proverbiais “olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço”, ou com o “bem prega Frei Tomás…”.

O problema é bem mais profundo. O BE nasceu como uma espécie de “albergue espanhol” que acolheu trotskistas, maoistas, desiludidos do marxismo-leninismo do PCP, aqueles que achavam que o PS estava demasiado à direita e outros que, como em todos os demais partidos, nem sabem bem por que militam. Tem sido assinalável a geração de consensos perante tão grande diversidade. Depois da solução abstrusa de uma liderança bicéfala, Catarina Martins tem sabido gerir as susceptibilidades sem quase nenhuma mácula. Todavia, os tempos são outros. O BE nasceu aspirando a ser um partido cosmopolita, moderno, anti-sistema e “de protesto”, como se vem dizendo. Elegeu as ditas “questões fracturantes” e em muitas delas foi importante para uma sociedade mais justa e equilibrada. Outras foram puro folclore.

Enquanto se está fora do sistema, como explica o sociólogo Luhmann, não é necessário seguir grandes regras. Com o parto da “geringonça”, o BE mudou e tem vindo a aproximar-se do legítimo “canto de sereia” de entrar num futuro governo de esquerda, perante a, para já improvável, maioria absoluta socialista. Mais próximo do poder, mais atenção e redobradas facas afiadas à espera de deslizes. Já se falou em “dores de crescimento”. Prefiro falar em imersão na realidade do poder, com as suas limitações, em especial de um país que produz pouco. O Bloco – como diriam os brasileiros – “caiu na real” e, na medida em que já vai assustando quem detém o poder (sobretudo o económico-financeiro, o real poder em todo o mundo), torna-se mais escrutinado. O PCP não resiste, por isso, às alfinetadas: “nós podemos ter sempre a mesma cassete, mas ao menos somos impolutos!”. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra, camarada Jerónimo! Se é certo que os comunistas são os políticos lusos mais coerentes na acção e no discurso, também é exacto que o fim último da sua ideologia, quando aplicado, tem a sua realidade plasmada em qualquer livro de História.

O PS e o governo de Costa rejubilam, ao mesmo tempo que se ventila a possível existência, após as eleições de 2019, de um mero acordo verbal que, pelos vistos, só o PCP aceitaria. A honra da palavra contra a prudência do escrito. Claro que ninguém acredita que um novo governo apenas do PS surja a partir de um mero aperto de mãos entre Costa e Jerónimo (ou talvez já quem a ele suceda). Porém, qual miúda de formas esbeltas, o PS só ganha em “flirtar” com a CDU – perdão, o PCP – e o BE, engalfinhando os pretendentes e fazendo com que as suas tradicionais bases de apoio enfureçam. O PC joga de modo perigoso, mas tem-nos habituado à sagacidade, arriscando a irrelevância política se houver uma “geringonça renovada”. Basta ver os sindicatos de novo nas ruas nos últimos tempos, verdadeira prova de vida comunista.

Donde, Catarina está entre vários fogos: o das sensibilidades internas, o do namoro com o PS, o do afastamento do outro noivo (PCP) e o de mostrar-se politicamente íntegro. Os “banhos de ética” normalmente redundam em meros salpicos de água que nem sequer é benta. Que o diga Rio, chamuscado no primeiro churrasco por Elina, Barreiras Duarte e outros. Mas Catarina também tem de fazer frente ao fogacho de paixão entre o PS e o PSD. Ninguém duvida que não haverá bloco central e que o PSD, apostado em ser o único parceiro credível nos grandes temas de Estado, arrisca-se a ter um dos piores resultados eleitorais da sua história.

Diria que este é, até agora, o maior teste à liderança, capacidade de construir pontes e resiliência de Catarina Martins. A gestão do “caso Robles” foi a possível, entre uma primeira negação de incoerência política infeliz e o habitual aproveitamento político em situações como esta. “Antes que me apontem os meus defeitos, deixa-me já colocar o dedo em riste!”. E as rasteiras ou “rasteirinhas” de todos os demais partidos foram inevitáveis. César, qual Zaratustra, falou. E já se sabe que o Presidente do PS diz aquilo que Costa politicamente não pode. Mas não deixa de ser o partido a falar, ainda por cima por quem, estatutariamente, ocupa lugar proeminente. César ateia e Costa apaga as chamas, deixando, porém, umas simpáticas brasas. Tudo uma boa estratégia do Primeiro-Ministro, político inteligente e habilíssimo e que, com um ou outro noivo, chegará ao altar de novo mandato.

O Verão de Catarina adivinha-se quente, mas desengane-se quem pensa que uma certa fragilidade cândida do habitus, à maneira de Bourdieu, equivale a ausência de faro político. Formosa e não segura, para já. Porém, as notícias do enfraquecimento de Catarina são manifestamente exageradas, como diria Mark Twain.

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