Gustavo Pacheco: o garoto que quis ouvir a senha do 25 de Abril e é agora um escritor “contentinho”

O brasileiro Gustavo Pacheco, antropólogo, diplomata e autor do livro de contos Alguns Humanos, é considerado pelo mestre do conto Sérgio Sant’Anna “uma voz originalíssima”. Os dois acabaram lado a lado na Festa Literária Internacional de Paraty.

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Sérgio Sant'Anna e Gustavo Pacheco na FLIP moderados por Guilherme de Freitas Walter Craveiro
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Gustavo Pacheco em Lisboa Miguel Manso

Quando era adolescente, Gustavo Pacheco leu um artigo de jornal em que o repórter comentava que uma das senhas usadas para a revolução do 25 de Abril tinha sido uma cantiga de Zeca Afonso. “Na mesma hora eu senti que precisava ouvir essa canção”, conta ao PÚBLICO, numa esplanada em Lisboa, o autor de Alguns Humanos (ed. Tinta da China). Nessa época, meados dos anos 1980, fim da ditadura no Brasil, o escritor e diplomata brasileiro, que hoje tem 46 anos, achou a história bonita. Mas não conhecia ninguém que soubesse onde ele podia escutar a canção. Resolveu dirigir-se ao consulado português no Rio de Janeiro, cidade onde nasceu, para ouvir como resposta do funcionário: “Garoto, aqui não temos essas coisas. Tente no [Real] Gabinete Português de Leitura que fica no centro da cidade.”

Quando lá chegou, a reacção foi a mesma. “Os velhinhos atrás do balcão dizendo: ‘Isto não é uma discoteca. Isso é um gabinete de leitura, não temos discos aqui.’” Foi para casa muito deprimido e desistiu, porque não sabia mais onde procurar. Só muitos anos depois o escritor que também é músico — toca cavaquinho brasileiro, instrumento basilar do samba e do choro, e fundou o bloco de Carnaval Cordão do Boitatá e o bloco Cordão Umbilical — conseguiu ouvir a canção e as obras completas de Zeca Afonso. “Agora a gente aperta um botão e tem tudo na palma da mão, mas eu levei 15 anos para ouvir essa música: Grândola, vila morena”, recorda, reflectindo que o facto de essa canção e tantas outras coisas estarem mais próximas não significa que os dois países, Brasil e Portugal, e as respectivas culturas se tenham aproximado. “Vejo as pessoas consumindo mais do mesmo. Essa diversidade é muito mais potencial e virtual do que real de facto. O Brasil continua a ser um país muito ensimesmado.”

Ele próprio só visitou Portugal pela primeira vez em 2015. “O que é surpreendente e até chocante para mim. Conheci tantos lugares que não precisava de ter conhecido, tantos lugares menos importantes, menos interessantes. Não sei por que é que demorei tanto tempo a vir para cá. A família da minha bisavó era do Porto, mas perdemos contacto. A minha avó era portuguesa e todos na minha família têm dupla nacionalidade. Eu era o único que não tinha e estou tirando. Até ao final do ano espero ser português.”

A bisavó e o bisavô de Gustavo Pacheco emigraram para Belém do Pará. O escritor, que no seu livro de contos Alguns Humanos consegue reconstruir tanta coisa, não sabe qual era o negócio desses seus antepassados. “Já é um passado distante. Não sei até que ponto isso tem a ver com a história da família, ou se tem a ver com a percepção do Brasil de estar olhando muito mais para a frente do que para trás.”

No entanto, o escritor sempre conversou muito com a avó portuguesa (mesmo tendo nascido já em Belém do Pará), que morreu com 92 anos, e foi através dela que ficou a conhecer “um certo Portugal”: “Um Portugal idealizado, obviamente. Curiosamente ela morreu este ano e pedi a minha nacionalidade, aconteceu tudo ao mesmo tempo”. Também foi em Portugal, em Março, que primeiro saiu o seu livro de estreia, Alguns Humanos, depois lançado em Maio no Brasil.

O sonho que resolveu tudo

Foi em 2015, quando Gustavo Pacheco era assessor internacional do então ministro da Cultura brasileiro Juca Ferreira, que conheceu a editora portuguesa Bárbara Bulhosa no Festival Literário Internacional de Óbidos. Bárbara Bulhosa “estava reclamando” que queria publicar Nelson Rodrigues em Portugal e não conseguia, Gustavo disse-lhe que podia ajudá-la porque quando vivia em Buenos Aires já tinha resolvido o mesmo problema a um editor argentino.

Ficaram amigos e quando, mais tarde, Bárbara lhe perguntou porque é que no Facebook a sua página oficial se intitulava “Axolotl Brasil”, respondeu-lhe: “‘Se você tiver um tempinho te mando um conto que mais ou menos explica’.” Ela leu o conto, gostou e propôs-lhe publicá-lo na revista Granta. Gustavo tinha publicado alguns contos em revistas de pouca expressão no Brasil e na revista online Modo de Usar, de Ricardo Domeneck, que entretanto acabou. Daí até à publicação do livro foi um passo: o conto que refere o axolotl intitula-se Ambystoma Mexicanum ou O Labirinto Invisível e é o último de Alguns Humanos.

“O incidente que abre o conto aconteceu comigo, a primeira vez que eu vi um axolotl de verdade caí para trás: era um pequeno ser humano sorridente, num aquário. Essa obra de arte que é descrita no conto de facto existe, é de um artista argentino, Luis Benedit, que fazia instalações, entre as quais essa, O labirinto invisível, que eu vi. Quando fui perceber que era o mesmo axolotl de que Julio Cortázar falava na sua obra — e sempre achei que era um ser mitológico —, o axolotl virou mais uma obsessão. Quanto mais eu lia sobre ele, mais fascinado ficava. Como é que alguma coisa tão parecida com um ser humano pode ser tão diferente?”, pergunta Gustavo Pacheco, que se assume como um “obsessivo compulsivo”, tal e qual uma das personagens de Rubem Fonseca. Quando se interessa por um assunto, lê tudo o que consegue encontrar sobre ele, passa a ser “a moda do momento” até se cansar dela e encontrar uma outra obsessão. “Me reconheço nisso como estilo de vida e como estilo de literatura. Gosto de estar mudando de interesses e de mergulhar neles também.”

Como leitor ou como escritor, Gustavo Pacheco gosta quando as coisas não são bem aquilo que achávamos que eram, quando temos a sensação de que nos tiraram o tapete. Essa vontade de desestabilizar o leitor e de provocar um duplo efeito, que é um efeito de interesse, de surpresa – “O que está acontecendo aqui? Deixa eu entender” —, agrada-lhe. Mas também espera que haja no seu trabalho “alguma semente de encantação ou de reflexão” e que o leitor possa parar para pensar sobre algumas das questões ali levantadas, como a da fronteira fluida entre o humano e o não humano, ou entre o real e a verdade. “Um conto não é por definição uma peça de ficção? Mas se estou lendo um conto em que todos os nomes são verdadeiros e todas as situações são verdadeiras, excepto dois por cento, isso ainda se qualifica como conto? Prefiro colocar essa pergunta do que responder.”

Brinca até um pouco com isso no conto Alguns humanos, que acabou por dar o título ao livro, e em que experimenta tentar conversar com possíveis leitores, possíveis críticos do seu livro. De tal maneira que um amigo lhe disse: “Você foi maroto, está querendo esvaziar de antemão todas as críticas; antes que alguém lhe diga ‘Esse título é fraco!’, você já foi dizendo que esse título é fraco.” Gustavo gosta de não se levar muito a sério, de escrever com humor. De provocar no leitor um riso nervoso. “É esse riso incómodo que me interessa, que espero ter na minha experiência como leitor, porque dura mais do que um riso mais leve.”

A maior parte dos contos desse seu primeiro livro nasceu a partir de episódios, de histórias entranhadas em livros de história ou de antropologia que Gustavo Pacheco anotava e guardava. “Em alguns casos demorou anos para alguma coisa acontecer, porque eu tinha o episódio ali e não sabia como o contar, em que contexto, que moldura literária ia usar.”

A história do primeiro conto, intitulado Dohong, a do orangotango em cativeiro no jardim zoológico do Bronx, andou muito tempo na sua cabeça. “Se eu pego um artigo de jornal que conta uma história e a conto de forma literal, literariamente o que vai ser isso? Vai ser uma versão piorada do artigo do jornal”, explica Gustavo Pacheco. Como se faz isso de uma maneira diferente ou melhorada? “Eu não sabia e quebrei a cabeça. Até que tive um sonho em que alguém me dizia: ‘Tem de contar essa história não a partir do ponto de vista da personagem principal mas do orangotango.’ Foi assim. Acordei, sentei-me a escrever e saiu. Libertei-me da história original. Até hoje fico esperando outro sonho assim. Foi a primeira vez na minha vida que isso me aconteceu. Várias vezes estive encalacrado sem saber como resolver uma história ou como terminar, e ia dormir pedindo outro sonho daqueles.”

Do outro lado do balcão

Actualmente Gustavo Pacheco vive em Brasília. É doutor em Antropologia pelo Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro mas a sua formação é em Direito. Trabalhou durante dois anos no escritório brasileiro da Human Rights Watch, onde o seu papel “era cutucar” o Itamaraty ( o Ministério das Relações Exteriores, onde hoje trabalha) por causa das violações dos direitos humanos no Brasil. “Durante um bom tempo eu estive do outro lado do balcão em relação ao Itamaraty. É algo que recomendo para todo o mundo, passar por várias experiências: faz ter uma perspectiva diferente.”

Fez um mestrado em Relações Internacionais e enveredou por uma carreira académica que acabou por desaguar na antropologia. “Fui antropólogo mais de seis anos. A antropologia é uma mãe generosa, ela recebe gente de muitas formações diferentes. Como antropólogo, fiz tudo que eu queria fazer: viajei, fiz trabalho de campo, trabalhei com povos indígenas no Brasil, com culturas e músicas tradicionais. Gravava muita coisa, fui musicólogo uma boa parte do tempo. Posso dizer que conheço bem o Brasil.”

O seu desejo era ser professor de antropologia, mas na época não abriram concursos em universidades federais e como estava sem dinheiro e acabara de ser pai concorreu a um emprego como diplomata. “Eu estava sem dinheiro, me sentindo sobrequalificado, era doutorado e não conseguia pagar as contas. Trabalhei alguns anos em Brasília, na área do meio ambiente, depois fiquei três anos e meio em Buenos Aires, quase dois no México; voltei para o Brasil para ser o assessor internacional do ministro da Cultura e foi nesse período que vim a Portugal pela primeira vez.”

Na altura, acompanhou Juca Ferreira na entrega do Prémio Camões a Hélia Correia. “Foi uma viagem muito forte. Voltei três meses depois para o Festival Literário Internacional de Óbidos. Nessa altura criou-se uma agenda lusófona forte, fui com o ministro a Angola e Moçambique, preparando aquela que seria a presidência brasileira da CPLP. Mas essa agenda, tal como tantas outras, não se cumpriu por causa do impeachment. Eu pedi para sair porque não fazia sentido, estava lá por causa da admiração pelo Juca. E voltei para o Itamaraty, mas não fiquei lá muito tempo porque recebi o convite para trabalhar na secretaria de Cultura de Brasília, onde estou emprestado, desde Setembro de 2016. Sou subsecretário do Património Cultural do distrito federal”, recapitula.

Todo este percurso influenciou de alguma maneira este seu primeiro livro, que Gustavo assegura que não nasceu de um conceito inicial. “Eu só percebi que existia um certo conceito já com alguns contos escritos. Que é por um lado aproveitar histórias que estão aí perdidas pelo mundo, e que eu conhecia das teses de dissertação de antropologia que tive de ler. Às vezes eram textos muito pesados, muito densos, e no meio aparecia uma jóia que nos fazia dizer: ‘Nossa, que incrível essa história!’ Mas só eu e mais meia dúzia de antropólogos é que estávamos a ter acesso. Como minerar, limpar e transformar literariamente isso?”

Contentinha e não contentona

Sérgio Sant'Anna foi o primeiro escritor que Gustavo Pacheco conheceu “pessoalmente, de carne e osso”. O mestre do conto brasileiro foi um dia ao colégio onde estudava conversar com alguns alunos. Lembra-se de uma pergunta que lhe fez nessa altura, aos 14 anos, e da resposta que o autor de O Vôo da Madrugada (Cotovia) lhe deu e que o desconcertou. “Como tive sempre o problema de não ter dinheiro para comprar todos os livros que queria comprar — a minha escola não tinha biblioteca —, perguntei se ele não se preocupava por os livros serem tão caros no Brasil, país com tanta gente analfabeta”, explica. Sérgio Sant'Anna disse-lhe que só se preocupava em escrever bem. “Estava esperando que ele dissesse que queria ver livros feitos em papel de jornal e vendidos em banca de revistas porque queria chegar a todo o mundo”, acrescenta Gustavo Pacheco, que logo a seguir comprou um livro que Sérgio Sant'Anna tinha lançado naquela época, A senhorita Simpson, de que ainda hoje gosta muito.

Quando publicou Alguns humanos, Gustavo enviou um exemplar para o escritor que tanto o tinha influenciado e que perto de comemorar 50 anos de carreira continua a impressioná-lo pela forma como na sua obra consegue “esticar a forma, explorar, se arriscar” em termos formais. “Às vezes você quebra a cara. E ele continua fazendo isso até hoje, ele está publicando um livro por ano, com 76 anos. E os livros são bons, são excelentes.” Na volta do correio, recebeu um email cujo subject  era: ‘Adorei’. “Aí eu caí para trás!”, admite o escritor.

Sérgio Sant'Anna viria mais tarde a colocar o elogio no Facebook: “Devorei e adorei Alguns humanos. Custa a crer que é o seu primeiro livro, pois você larga já como um dos melhores contistas brasileiros. E, o melhor de tudo, tem uma voz originalíssima. Senti apenas algumas características de Rubem Fonseca, nas pesquisas detalhadas; de Borges, no seu rico e sofisticado imaginário, e, por fim de Cortázar, pela homenagem que lhe presta no último conto. Mas não se preocupe com essas observações. Você tem uma voz própria e uma grande contribuição a dar à literatura brasileira, ao mesmo tempo que pode ser lido em qualquer lugar do mundo. Parabéns e um grande abraço do agora admirador. Sérgio”.

Na última quinta-feira, os dois estiveram juntos no palco da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), que terminou este domingo. Referindo-se ao email que enviou a Gustavo, Sérgio disse: “Fui absolutamente franco e sincero”. E garantiu ter agora relido o livro, que mistura ficção com realidade, “com o mesmo prazer” da primeira vez.

Para Gustavo Pacheco, as histórias não são só histórias, são o que fazemos delas. “Tento chamar a atenção para o quanto a nossa cultura está entremeada de barbárie. Não só no passado. Histórias absurdas e insólitas como as que estão no livro estão ao nosso redor”, disse o escritor na FLIP. “Muitas dessas histórias têm paralelos inegáveis com coisas que acontecem hoje em dia. Por exemplo, o conto Kuek, sobre o índio botocudo que foi levado para a Alemanha. Se se pensar que os botocudos são os antepassados dos índios krenak e que esses estão entre os que mais sofreram com a tragédia em Mariana, Minas Gerais, conseguimos fazer uma linha de continuidade histórica directa entre as atrocidades que os botocudos sofriam no século XIX e as atrocidades que os seus descendentes ainda hoje continuam sofrendo. Mas o que mais me interessa é falar disso de uma maneira oblíqua, indirecta, e não em tom panfletário”, argumentou em Paraty.

Quando recebeu o email elogioso de Sérgio Sant'Anna, um amigo disse-lhe: “Cara, um elogio desses vale mais do que qualquer prémio literário”. Gustavo acha que ele está coberto de razão, porque isso o libertou. “Não que eu esteja perdendo o meu sono, porque o livro levou tanto tempo em gestação — sete anos —, mas é óbvio que receber boas críticas todo o mundo gosta. No fundo, terminei com aquela sensação de que aquilo é o melhor que eu podia fazer, se as pessoas gostam ou não… estou em paz com a minha consciência artística”, diz na esplanada de Lisboa. E termina recordando o que Clarice Lispector disse a uma jovem escritora: “Quando você fizer sucesso fique contentinha mas não contentona.” Por outras palavras, “não se deixe impressionar de mais, aproveite, curta, mas não leve tão a sério nem as críticas muito boas nem as críticas muito más”. Conselho que Gustavo tem tentado seguir à risca.

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