Laborinho Lúcio, o elogio e (alguma) hipocrisia reinante

Só agora consegui tempo para ler a entrevista concedida ao PÚBLICO por Laborinho Lúcio. É riquíssima e os temas abordados dariam vários ensaios. Gostava de reflectir aqui sobre alguns deles.

Só agora consegui tempo para ler a entrevista concedida ao PÚBLICO por Laborinho Lúcio. Tenho tido o enorme gosto de o encontrar em eventos científicos, de cidadania e literários. Não tenho dúvidas em afirmar, pelo que conheço, que foi o melhor Ministro da Justiça em democracia. A sua entrevista, como sempre, é riquíssima e os temas abordados dariam vários ensaios. Gostava de reflectir aqui sobre alguns deles.

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Só agora consegui tempo para ler a entrevista concedida ao PÚBLICO por Laborinho Lúcio. Tenho tido o enorme gosto de o encontrar em eventos científicos, de cidadania e literários. Não tenho dúvidas em afirmar, pelo que conheço, que foi o melhor Ministro da Justiça em democracia. A sua entrevista, como sempre, é riquíssima e os temas abordados dariam vários ensaios. Gostava de reflectir aqui sobre alguns deles.

Antes disso, porém, esperando que o Laborinho não me leve a mal, deixem-me partilhar convosco uma história que diz tudo sobre este ser humano que, sendo juiz, foi ministro por ter sentido um profundo dever de cidadania. E que foi dos mais marcantes directores do Centro de Estudos Judiciários, inaugurando uma nova forma de encarar a formação de magistrados que, no essencial, ainda considero actual. Era Laborinho ministro e foi-lhe comunicado que num dado estabelecimento prisional (EP) havia problemas graves, por se recusarem os reclusos a estar no mesmo espaço que um outro recluso, portador do VIH. Estávamos no período em que pouco se sabia sobre essa maldita doença que, à época, equivalia a sentença de morte. O ministro deu indicações ao director do EP para reunir os reclusos no pátio e que ele aí se deslocaria. Figuro a cara do director. Os homens alinhados, Laborinho disse-lhes que sabia o que se passava e que não deviam temer, explicando-lhes as formas de contágio. E acrescentou que, como prova do que referia, iria dar um abraço ao doente, fazendo depois os demais reclusos o que entendessem. Imagino a força imagética desse abraço. Atónitos, passado o tempo necessário para processar grandes emoções, um a um, os outros abraçaram o proscrito. Tudo serenou e o ministro saiu como entrou. Sem alarido.

E assim tem Álvaro conduzido a sua vida. Desligou-se do Direito, mas não da Justiça, como eloquentemente sublinha na entrevista. É agora, como gosta de dizer, “aprendiz de escritor”. E que escritor. Não tem receio de assumir que toda a administração da Justiça é falível, porque construída por mulheres e homens, importante sendo que exista a perfeita noção da subjectividade e a sua redução ao mínimo, de entre outros instrumentos, por via de uma criteriosa selecção dos factos e de uma fundamentação nessa sede e na da subsunção jurídica lógica e imparcial. Assume ainda que falta coragem política para mudar profundamente a administração da Justiça.

Permitam-me agora salientar um aspecto de que Laborinho Lúcio não fala nesta entrevista, mas que me preocupa enquanto cidadão e jurista. No Direito Penal, ensinamos que as sanções criminais servem para afastar a comunidade do delito e para reabilitar o condenado. O art. 40.º, n.º 1 do Código Penal assim o diz, em concretização de comandos constitucionais. Várias têm sido as interpretações sobre o tema, que para aqui não interessam. O que desejo salientar é a enorme falácia de que, por regra, se alimenta o nosso ordenamento jurídico-penal (e de tantas outras latitudes). Desde cerca da década de Sessenta da passada centúria que se diz que a ressocialização é um mito, o que conduziu, sobretudo nos EUA (mas não só), a uma “viragem punitiva”. Ouvimo-la muitas vezes nas ruas.

Se quisermos ser congruentes com o que está escrito nas leis e não nos limitarmos a proclamações piedosas, como tantas vezes sucede (porventura herança do passado salazarista), então deveríamos levar a sério a ressocialização. Para tal não poderia haver técnicos nos EP com centenas (sim, é verdade) de reclusos para acompanhar, nem uma norma esdrúxula que só obriga a elaborar um “plano individual de readaptação” (termo horrível) em condenações superiores a um ano de prisão. E os outros? Limitam-se a passar aí o tempo? Se isto tudo não fosse, como regra, letra morta, deveríamos ter, como em outros Estados, “casas de transição” públicas para quem sai do encarceramento e não tem qualquer rede social. Se quase tudo não fosse “para inglês ver”, haveria muito mais projectos psicológicos, educacionais, de alteração de comportamentos, mais condições para unidades livres de drogas. Maior vontade de o sistema prisional colaborar com a “sociedade civil”, como a lei diz. Lembro-me de um projecto que dinamizei e que levou mais de 10.000 livros a todas ou quase todas as prisões de Portugal continental, fruto da generosidade de tantos. O Director-Geral da altura entendia que isso “dava má imagem do serviço”, numa altura em que o país quase estava na bancarrota e que, como se percebia, esta não era uma prioridade do Estado, mas que este tinha obrigação de acarinhar. Ao invés, os obstáculos existiram e nem sequer se obteve autorização para encerrar a campanha com sessão num EP, por “razões de segurança”. Imagino que seriam candentes, pois estariam presentes indivíduos tão perigosos como presidentes de câmara e representantes da Fundação de Serralves, da Pastoral Penitenciária e de uma ONG.

Voltando ao ponto: os estudos criminológicos mostram, para quem se pauta por mera análise custo-benefício, que os contribuintes gastam mais com a reincidência do que com uma ressocialização à séria. Assim, o que temos é um arremedo de (re)inserção social. Obviamente que assim não vamos lá.

Uma última nota. Laborinho Lúcio disse com todas as letras que há uma justiça para ricos e outra para pobres, tal como sucede com a saúde, a habitação, a educação. Verdade verdadinha, que também digo sempre que dou formação a médicos, p. ex., incomodados, alguns, com a crescente consciencialização dos direitos dos doentes. E porquê? A Justiça reproduz a sociedade; se ela é desigual, o que se esperava? E ficamos assim? Não. Mudem-se, para começar, as regras do acesso ao Direito que, hoje, praticamente só estão acessíveis a um sem-abrigo. Um casal que ganhe a fortuna de um salário mínimo cada um não tem direito a isenção total e nomeação de advogado. Depois do que disse, dirão que sou um idealista. Nada disso. Com a frontalidade que critico quem diz que a ressocialização é uma treta sem nunca a termos efectivamente implementado, também assumo que delinquentes existem que não são ressocializáveis. Verdade porventura inconveniente – limito-me a verificar um facto, sem juízo de valor e, obviamente, sabendo que existe uma multiplicidade de razões para o efeito. E para estes, o labéu de “incorrigíveis” à maneira do penalista alemão Franz von Liszt? Não. Para estes a prisão é uma contenção que protege a sociedade. A ressocialização deve ser proposta e nunca imposta. Para além de razões constitucionais, por imperativos pragmáticos – só assim pode operar. É óbvio que a esses reclusos terão de se aplicar todas as garantias constitucionais e legais. Não defendo nenhum “Direito Penal do inimigo” (Jakobs). Mas também sempre me incomodou o moralismo hipócrita que nos impede de aceitar factos que estão à nossa frente. Ainda que do tamanho de elefantes.