"É bem mais difícil lidar com os vivos do que com os mortos"

Trabalham em cenários de crime, alguns de grande violência, com ou sem cadáveres. Aos peritos da área da Criminalística do Laboratório de Polícia Científica (LPC) da Polícia Judiciária é pedido que controlem emoções, sobretudo quando os casos envolvem crianças da idade dos seus filhos

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Paulo Pimenta

Vestem um fato branco que os cobre da cabeça aos pés. Calçam luvas e põem máscaras no rosto para não se contaminarem, nem contaminarem os vestígios que vão recolher no apartamento, local de crime. São dois peritos do Laboratório de Polícia Científica (LPC) da Polícia Judiciária (PJ) de Lisboa. Encontram uma mulher morta a tiro, sangue no corredor, uma janela com o vidro partido e uma arma escondida debaixo do sofá. Por norma, não é um cenário agradável de se ver. Mas desta vez nada daquilo é real.

Afinal, a mulher é uma boneca e o crime é uma simulação feita para o P2, num dos apartamentos da Escola da Polícia Judiciária (EPJ), em Loures, onde se costumam treinar todos os futuros elementos da PJ. Na vida real é bem diferente. “Lidamos com muita violência. Vemos o pior da sociedade”, admite Fernando Viegas, chefe do sector do Local de Crime e responsável para a área de criminalística do LPC. Passos calmos, voz pausada, Fernando Viegas, 50 anos, vai desfiando: “Quando entramos neste mundo, vemos que o crime é transversal à sociedade.” Muitas pessoas pensam que só acontece nas classes mais baixas. Nada disso. Por tudo isso, diz, “é preciso gostar muito deste trabalho para se conseguir estar aqui muito tempo, porque psicologicamente é muito desgastante”. Seja pela violência que os peritos vêem, pela pressão que sentem para não falharem ou pela pouca liberdade de acção na vida pessoal, com o tempo que a profissão exige. Mas também há o outro lado da moeda: “É nobre e gratificante saber que estamos a contribuir para a resolução de um crime e a ajudar a sociedade.” O pior nesta profissão nem é tanto, continua, “o ter de lidar com a morte como muitas pessoas pensam”. O impacto de ver e mexer no cadáver as primeiras vezes “é duro, sim”. Até pelo intenso cheiro do corpo que se sente. “Parece que se leva um bocado [do cheiro da morte para casa]”, diz o perito do LPC Carlos, 49 anos, que quis ser identificado com um nome fictício, como, aliás, todos os participantes nesta reportagem, à excepção do chefe do Local de Crime, Fernando Viegas. Também para o perito do LPC Nuno, 40 anos, há 17 na PJ, foi “uma das coisas que mais [fez] e ainda faz confusão; abala um bocado”. A prova dos nove tiveram-na todos logo na primeira autópsia a que assistiram, durante a formação. “Se naquele dia tivesse vomitado, não estaria aqui hoje a trabalhar”, observa Nuno. 

Mas isto de lidar com a morte tem muito que se lhe diga e, a dada altura, passa a fazer parte da normalidade, a ser rotina. “Vou ao local do crime e, quando saio, esqueço completamente. O cérebro bloqueia a informação”, conta Fernando Viegas. Tanto que, aquando da reportagem do P2, já nem se lembrava, em pormenor, das feições da vítima do último cenário de crime onde tinha estado havia poucos dias. “Não é insensibilidade”, assegura. Mas “o cérebro tem uma capacidade muito grande de adaptação para defesa do ser humano. E o cadáver deixa de fazer confusão a nível psicológico”, prossegue o responsável.

Os peritos não deixam de ter sentimentos, como qualquer outra pessoa. “É óbvio que mexe sempre”, desabafa Fernanda, 55 anos, há uma década no LPC. Sobretudo quando são crianças e em casos de homicídio e abusos sexuais. Mas os peritos estão tão “concentrados a fazer o trabalho o melhor possível” que, com o tempo, adianta, “se aprende a deixar as emoções fora do local do crime”.

Pôr as emoções de lado

Mais complicado do que isso é ter de lidar com os familiares das vítimas quando os abordam. Querem obter respostas sobre o crime. Já aconteceu a Fernando Viegas. Não se pode simplesmente virar-lhes as costas, é preciso ter respeito pelo sofrimento e dar-lhes uma palavra de conforto. “É, por isso, bem mais difícil lidar com os vivos do que com os mortos, porque com estes últimos acaba por se tornar uma coisa mecanizada”, afirma. Igualmente difícil é “ver toda a violência em torno do crime”, admite o chefe do sector do Local de Crime que anda no terreno há duas décadas. E em toda a sua carreira no LPC, há um caso em especial, envolvendo crianças, que o “marcou mais”. O de uma mãe e quatro filhos que morreram carbonizados na sequência do incêndio que os encurralou em casa. “Senti-me muito mal psicologicamente, porque as quatro crianças ainda estavam agarradas à mãe e o cheiro era intenso”, lembra. Não foi fácil, mas o Fernando Viegas teve, então, de pôr as emoções de lado para conseguir fazer a perícia no espaço. Esta forma de reagir é unânime entre todos os peritos com que o P2 falou. Como sucedeu com Fernanda quando foi chamada para o caso de um bebé esfaqueado pelo pai no pescoço. “O primeiro impacto é ver um bebé. Mexe sempre connosco”, desabafa, olhar comovido. “[O truque] é tentar, ao máximo, não nos ligarmos à história.” Ainda assim, Fernanda não esquece passados todos estes anos.

Quando há crianças envolvidas, custa um pouco mais a todos. Sobretudo, quando são da idade dos filhos. “Pensamos que pode acontecer o mesmo connosco”, desabafa Nuno, olhar pensativo. E dá que pensar mesmo que o cérebro queira desligar-se no momento em que está a fazer a perícia. Lembra-se bem de um caso, em particular, em Beja, que o deixou um bocado enternecido. O de um avô que matou a avó, a filha e a neta. Não que o tivesse impressionado visualmente, porque já lá não estavam os corpos quando Nuno chegou para fazer interpretação de manchas de sangue, mas, sim, pela história em si. “O que leva alguém ao limite para matar familiares tão próximos?”, questiona. E isso dá que pensar: “Onde é que vivemos afinal?”

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Nuno procura “não personalizar e ver tudo como trabalho”. Mas que custa custa. Como o caso da mãe que lançou ao mar as duas filhas, de 19 meses e quatro anos, em Fevereiro de 2016, em Caxias. Nuno já só foi fotografar a segunda menina quando apareceu uns dias depois. Mas a história em si mexeu consigo. A mãe já foi, entretanto, condenada a 25 anos de cadeia. Um outro caso de que se lembra bem diz respeito a uma mãe que envenenou os filhos com comprimidos dentro de uns bolos. Já era noite dentro quando Nuno chegou ao local do crime, numa mata, na zona do Estádio Nacional, em Lisboa. “Quando cheguei, vi os miúdos mortos no carro. Apercebemo-nos de envenenamento por causa da espuma na boca”, recorda. Nuno fez o exame ao local e a viatura foi depois transportada para o LPC também para análise. A mulher foi encontrada morta, uns dias depois, uns metros mais acima do local onde deixou os filhos. “Soube-se depois que haveria conflito com o pai das crianças. Uma das informações era a de que ela achava que estava a proteger os filhos”, lembra.

Ainda hoje Carlos se comove quando recorda o caso da menina que morreu afogada numa piscina, em Vila Franca de Xira. “Tinha a idade da minha filha, naquela altura, e até tinha algumas parecenças”, recorda, olhar pensativo. “Parei ali um bocado, mas depois uma pessoa regressa à realidade e fiz o meu trabalho”, lembra. “Temos empatia, mas sem nos envolvermos muito. Criámos esses mecanismos de defesa”, continua Carlos. “Torna-se uma coisa mecanizada no nosso cérebro”, reforça Fernando Viegas, que também esteve no local em Vila Franca. O caso marcou-o igualmente por, tal como Carlos, ter um filho da mesma idade da menina. “Marca-nos mais, porque há uma ligação mais directa. Com crianças é sempre mais difícil”, prossegue o chefe do sector do Local de Crime.

Mas no caso de Carlos também foi muito complicado quando foi chamado a Pedrógão Grande, por altura do incêndio que vitimou dezenas de pessoas. “Foi um bocado pesado. Assistimos a muita coisa”, recorda, emocionado. Quando a equipa lá chegou, não conseguia contactar os colegas, não havia comunicações. “Entrámos em perigo, numa determinada zona, e depois tivemos de voltar para trás por causa do fogo”, lembra. A parte pior foi ver “os corpos carbonizados, mas já não [apanhou] a estrada da morte”. O que sentiu? “Se calhar, não sentimos tanto, porque se tem de fazer a fotografia e todo o trabalho técnico. Mas depois, quando paramos um bocado, cai a ficha”, diz.

A pressão de só se fazer uma vez

Mais do que lidar com a morte no momento, os peritos têm de se concentrar ao máximo em todos os pormenores. Não há tentativa e erro neste trabalho. Qualquer distracção ou falha pode deitar tudo por terra. “[Tal como os peritos fizeram na simulação para o P2,] só se pode fazer o exame ao local uma vez e é grande a pressão de sabermos que não podemos falhar”, explica Fernando Viegas. “Não é insensibilidade. Se não conseguirmos lidar com isso, não conseguimos fazer o nosso trabalho”, continua Fernanda. E, afinal, como fazem o trabalho no local do crime?

No apartamento da EPJ, é ver Fernanda e Carlos a simular todo o procedimento, tal e qual como se estivessem na vida real. Só que, mesmo assim, é muito diferente do que se vê nos filmes ou na série televisiva CSI. “Em termos científicos, eles baseiam-se em cenas reais”, diz Nuno. “Ah, também a rapidez com que é tudo feito, que é o tempo do episódio, não tem nada que ver com a realidade”, continua, entre risos. Fernanda até brinca que nos episódios os investigadores vão todos janotas para o local do crime. Mais uma vez, na realidade não é assim. Fernanda e Carlos vestem o fato branco — equipamento de protecção individual descartável — que os cobre da cabeça aos pés. Põem máscara e luvas. “A ideia é prevenir as contaminações a nós e ao local. Não são sítios limpos, há muito sangue, a salubridade não é propriamente o nosso mundo”, esclarece Nuno. E vai explicando tintim por tintim todo o procedimento desde que ali chegam, num veículo móvel adaptado. É um autêntico laboratório móvel a que chamam “viatura de cena de crime”. Lá dentro têm todo o material de que precisam para a recolha de vestígios biológicos e de balística, fibras, de impressões digitais e marcas de sapatos. Todos os departamentos e directorias da PJ têm pelo menos uma viatura destas. Em Lisboa há duas. 

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Fernanda vai à frente a fazer aquilo a que chamam “varrimento” com uma luz forense forte e branca. Trocado por miúdos, a perita do LPC vai a abrir caminho com uma luz rasante que se foca no chão para saberem onde podem pisar sem destruir nenhum vestígio. Alguns deles nem são visíveis a olho nu, como marcas de calçado, sémen e sangue que o suspeito esteve a limpar. À medida que vão encontrando vestígios, vão assinalando com umas setas indicadoras, com números pequeninos, para depois saberem onde podem ou não pisar. Fernanda coloca, por exemplo, uma seta ao pé da cápsula de uma pistola semiautomática que está no chão ao lado da cama. “Balas só nos filmes”, atira Nuno, entre risos. Coloca depois outra junto à arma que encontram debaixo do sofá, na sala, e junto às beatas e aos copos que estão em cima da mesa. O outro colega Carlos segue atrás a fotografar esses mesmos indícios de crime, incluindo o corpo que, neste caso hipotético, está deitado numa cama no quarto com um projéctil na cabeça.

Os dois elementos do LPC criam, assim, um caminho para depois os colegas se movimentarem à vontade sem os destruírem. Fazem, então, uma primeira leitura ao cenário de crime. 

Os peritos não podem entrar em suposições. Mas presume-se que esteve alguém a fumar na sala, por causa das beatas de cigarros, e a beber, porque deixaram dois copos e uma garrafa. Talvez a vítima, que é a dona da casa, acompanhada de uma outra pessoa, que pode ser o suspeito. O vidro partido na sala indicia assalto, mas depois vem-se a descobrir que não é esse o móbil do crime. Cai por terra, porque a vítima tem um cordão de ouro ao pescoço. E há gotas de sangue no chão do corredor que conduzem até à casa de banho. Detecta-se alguma coloração rosada no lavatório, o que indica que o suspeito pode ter lavado a arma ou as mãos depois de se ter cortado no vidro que partiu para simular o assalto. 

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Agora que já fizeram o varrimento, fotografaram e colocaram os marcadores nos vestígios, já todos podem circular à vontade. Começam a recolher os vestígios e até para isso há uma ordem a seguir. Primeiro, os biológicos — cabelos, sangue, suor, sémen, saliva —  e só depois os balísticos e os latentes — estes não se vêem e entre eles estão os vestígios lofoscópicos que são impressões digitais e palmares (palma da mãos) e plantares (dos pés). Tudo é catalogado e guardado em envelopes individuais para levarem para o LPC para os colegas das outras áreas examinarem. A cápsula, por exemplo, vai para a balística para identificar a arma que disparou. A base de elementos balísticos,  tal como existem as de impressões digitais e de ADN, dirá se tem informação útil. Os vestígios biológicos seguem para a biologia e genética, para se determinarem perfis de ADN de pessoas. “As beatas da mesa são recolhidas para um envelope de papel vegetal que é um bom vestígio biológico”, explica Nuno. No caso dos copos e das garrafas, recorrem ao exame da zaragatoa que é feito com um cotonete grande para recolher ADN. Depois as impressões digitais são entregues na criminalística para se fazer a identificação das pessoas. As marcas de calçado, por exemplo, vão para a especialidade forense, com o mesmo nome, para se identificar qual a marca ou modelo e o tamanho; e depois compara-se com calçado suspeito.

“A nossa missão é fazer trabalho de recolher prova para depois ajudar a prender alguém”, sublinha Fernando Viegas, enquanto os colegas continuam a examinar o apartamento. O objectivo é sempre que os dados recolhidos sirvam de prova quando o processo chegar a julgamento. 

“O corpo fala connosco”

Começa-se sempre pelo corpo. Parece um cliché. “Mas, muitas vezes, o cadáver fala connosco, dá muita informação sobre o que aconteceu [que pode ajudar a resolver o caso]”, elucida o perito Nuno. Já Fernando Viegas costuma “dizer aos novos elementos em formação que o corpo é um vestígio, que se trata numa perspectiva científica, com todo o respeito” que lhe é devido. “Se o local tiver muito sangue, temos de olhar para as lesões da vítima e ver se são condizentes com a quantidade de sangue que encontramos”, prossegue Fernando Viegas. Neste caso hipotético, uma mulher — que é uma boneca — tem um ferimento de projéctil na cabeça. 

Só depois é que os peritos examinam o resto do apartamento.

Ainda no cenário simulado reina a tese de que o homicida se terá ferido por causa das gotas de sangue no chão do corredor. Algum deste sangue foi limpo. Com recurso ao luminol — um reagente químico — aplicado com borrifadores, os técnicos do LPC conseguem pô-lo bem visível. Como, aliás, sucedeu, por exemplo, num caso de homicídio em Coimbra. A mulher da vítima dizia que tinha sido um acidente. Mas a aplicação do luminol no chão veio a revelar que “senhora tinha tentado limpar todo o sangue da casa”, lembra Fernando Viegas. Os peritos juntaram depois as fotografias do antes e depois da aplicação do produto reagente. “Quando se vai para sede de inquérito, é importante que os nossos relatórios tenham muitas fotografias para explicar bem o que aconteceu.” Isto porque, elucida, é o procurador quem vai tomar decisões sobre o que se vai fazer. E ele não esteve no local do crime.

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Com a arma todo o cuidado é pouco. É preciso fazer as operações de segurança, verificar se o carregador tem ou não munições e se há munição na câmara. “Pode disparar acidentalmente e põe-nos em perigo”, afirma Nuno.

Quando a PJ é chamada ao local do crime, vai sempre, por norma, um elemento da investigação criminal da PJ e outro do LPC. “Nós fazemos a recolha da prova material e eles fazem a investigação do processo e também a recolha da prova testemunhal das pessoas”, explica chefe do sector do Local de Crime. Depois juntam a informação e fazem a investigação.

A primeira vez

Os olhos de Fernanda, 55 anos, já viram muita violência nas cenas de crime com uma década como perita do LPC. Tenta fechá-los a tudo quanto é violência que viu durante o dia, quando à noite roda a fechadura da porta de casa, para conseguir dormir uma boa noite de sono. Não foi o caso da primeira vez que foi a um local de crime. “Cheguei bem, mas levei o trabalho para casa. Mal dormi”, lembra, com emoção. Estava, então, a estagiar e foi acompanhar dois colegas. Saiu-lhe logo um daqueles crimes que ainda hoje não esquece. Marcou-a? “Marca sempre, porque dez anos depois ainda me lembro perfeitamente. Três cadáveres não é muito normal.” Foi um duplo homicídio seguido de suicídio, em Lisboa. Fernanda lembra-se, como se fosse hoje, “a senhora estava num quarto, o filho noutro e o suspeito no corredor”.

Depois desse vieram bem mais do que uma dezena. Uns afectam-na mais do que outros, porque Fernanda descreve-se como uma pessoa sensível. Há algum truque? “Acho que todos temos, quando vamos ao local. Deixamos as emoções de lado e não estamos envolvidos na história pessoal do cadáver.” E o trabalho continua no laboratório: distribui os vestígios recolhidos para as outras áreas e há ainda um relatório para fazer. “Nunca dá para pensarmos muito nos casos”, afirma, porque são uns atrás dos outros.

Carlos também se lembra bem do primeiro crime em que trabalhou. Um homem é assaltado num pinhal, lá para os lados de Sines, e “no meio da confusão, passaram-lhe com o carro por cima. Ele ficou debaixo”. Nuno já nem se lembra bem do primeiro crime que envolvesse mortes. Mas, recorda-se, sim, do seu primeiro caso: “Uma espécie de explosivo artesanal que se encontra facilmente na Internet.” Sem feridos.

“Espero nunca usar a arma”

Todos eles gostam do que fazem. Mas são unânimes em dizer que é preciso estofo para esta profissão. À pergunta se sentem que correm risco de vida, Nuno diz logo que não. Ainda assim, o perigo pode estar à espreita numa esquina.

Já apanharam alguns sustos. Como aconteceu com Nuno e alguns polícias que estavam com ele, num armazém. Foram, então, surpreendidos pelos suspeitos que voltaram para trás. “Alguém estava lá fora de vigia e deu o alerta. Eles próprios também não estavam à espera que estivesse alguém no armazém”, lembra. Acabou por ser “mais ou menos pacífico”. E a polícia prendeu-os. Estavam, então, a fazer um exame de vestígios por causa de furtos dos ATM. Aquele armazém servia de esconderijo para os indivíduos guardarem as ferramentas e os carros que usavam. A polícia também veio a descobrir que desmontavam carros e depois os montavam com peças diferentes para vender.

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Já Carlos admite sentir-se “um bocado intimidado” quando o trabalho é em alguns bairros sociais mais propensos à violência. Como quando foi chamado a fazer exame no caso do tiroteio num bairro, quando os polícias foram recebidos a tiro. “Sentimos pressão.” Por norma, vão sempre dois elementos da secção Local do Crime e outros dois da investigação criminal e têm o apoio da PSP ou da GNR que monta um cordão policial à volta, fazendo segurança ao perímetro. Mas é sempre um risco. “Podem desatar aos tiros ou mandar um vaso de uma janela”, diz Carlos. “As situações de risco podem acontecer e são incontroláveis”, observa Fernando Viegas. E recorda: “Já tive de trabalhar várias vezes na Cova da Moura e temos de ter sensibilidade para gerir as situações.”

“Nunca precisei de usar a arma e espero nunca a usar”, diz Carlos. De resto, todos o afirmam. A arma é mais para segurança. “Se há coisa que nos ensinam, é que a arma nunca sai do coldre para brincar ou mostrar”, sublinha Nuno. Até porque não consideram que correm risco imediato, pois estão sempre acompanhados por inspectores da PJ, elementos da PSP ou da GNR.

São pessoas diferentes?

À pergunta se é uma pessoa diferente depois de estar neste trabalho, Fernanda responde, sem hesitar, que sim. “Sinto essa diferença; a parte emocional ficou um pouco endurecida, um pouco mais desconfiada, menos crédula.” “[Além disso,] a vida pessoal fica completamente trocada, porque trabalhamos 24 horas e temos prevenções de 24 horas”, conta.

Também Nuno se considera “uma pessoa um bocadinho mais fria”, porque fala “muito naturalmente” sobre o que faz e “as pessoas ficam escandalizadas”, adianta, por entre risos. “A minha família até diz que lido com os bandidos”, graceja. E é nela que mais pensa. Acaba por ser complicado gerir a vida familiar. Quantas vezes Nuno está numa escala de prevenção e tem de sair a correr de um convívio familiar ou a meio de uma refeição, por exemplo. “Essa é a parte mais complicada neste trabalho.” Uns anos comemora o Natal ou Ano Novo com a família, outros não. Assim como todos os outros.

Fernanda também concorda que é difícil harmonizar a vida profissional com a pessoal. “No meu caso não tanto, porque não tenho crianças. Mas a nossa vida social fica um bocado posta de lado”, continua. Por isso, realça, com um sorriso, “as férias são quase sagradas”. É o momento de desligar “por causa do stress da profissão”, concorda Nuno. Carlos tem consciência de que tem uma profissão de risco e de grande desgaste. “Não temos horas para nada. Posso ser chamado a qualquer momento.” Na hora de ir buscar os miúdos à escola, é preciso gerir muito bem. “Mas gosto daquilo que faço”, sublinha. Como aliás, todos eles.

Resta pouco tempo para a família. “Se há uma coisa como a que aconteceu em Pedrógão Grande, o telefone toca às três da madrugada e não dizemos que não vamos”, diz Fernando Viegas. Por tudo isto, o chefe do sector do Local de Crime também se descreve como uma pessoa mais reservada. “A minha posição de chefia leva a sentir mais pressão.” E sentiu-a bem no caso de Maddie McCann, a menina inglesa de quatro anos, que desapareceu na Praia da Luz, no Algarve. “Estive lá todas as vezes. Imagine a pressão de fazer o trabalho com os media e tudo”, afirma. “[Mas] são esses momentos que também nos fazem crescer.”

Carlos, por exemplo, pode ter ficado um pouco mais protector, mais “galinha” como pai, por causa da profissão. “Estando neste meio, há certas coisas que nos criam alertas, tocam as companhias”, refere. E como é que se lida com isso? “Tento não ser ansioso. Tento conseguir um equilíbrio e não ser controlador.” Os filhos sabem o que faz, às vezes até perguntam, mas não fala sobre isso. Tenta sempre “separar as águas”. Já Nuno, pais de dois filhos, de sete e 12 anos, não se considera um pai mais ansioso. Admite, porém, “estar mais alerta para algumas situações, como as violações”. E o que faz? “Procuro ouvi-los e tentar perceber se há algum perigo, mas também não os alarmo.” Os peritos do LPC nunca sabem como será o dia seguinte — mas a vida continua.

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A mulher é uma boneca e o crime é uma simulação feita para o P2, num apartamentos da Escola da Polícia Judiciária, em Loures, onde se costumam treinar todos os futuros elementos da PJ Paulo Pimenta