Lisboa, Madrid, Paris, Berlim

Na Europa, praticamente desde a sua fundação, foi quase sempre assim: coube aos pequenos países impedir o confronto entre os grandes e encontrar soluções de compromisso. Portugal está em boa situação para seguir a tradição.

Reserve as terças-feiras para ler a newsletter de Teresa de Sousa e ficar a par dos temas da actualidade global.

1. Duas visões complementares ou, se quisermos, convergentes, mas uma mais ambiciosa do que a outra. Pode ser esta a conclusão do “Encontro com os Cidadãos” organizado em Lisboa, aproveitando a visita do Presidente francês, cuja razão principal foi uma cimeira entre França, Portugal e Espanha para melhorar as redes de transporte de energia, vencendo a barreira dos Pirenéus e tirando benefícios mútuos para a competitividade económica e a segurança energética. Para Portugal, é fundamental para poder tirar partido do Porto de Sines e da sua nova infra-estrutura para receber o gás líquido que os EUA exportam. Por um dia, a Europa voltou a fazer algum sentido, nestes tempos de crise profunda em que, talvez como nunca antes, a União é duramente posta à prova perante um mundo que deixou de lhe ser favorável e perante o descrédito, parcial, das suas democracias.

2. Emmanuel Macron tem uma enorme virtude. Não tem medo de um discurso inequivocamente europeu, ao mesmo tempo que reconhece que é preciso reformar ou refundar o actual modelo de integração. Foi assim na campanha para as presidenciais de Maio do ano passado. É assim um ano depois. O seu “centro radical” provocou uma revolução na paisagem política francesa. O peso da França voltou a sentir-se no combate pelo futuro da Europa, reequilibrando uma parceria com a Alemanha sem a qual a Europa não resistiria um só dia. Tem toda a razão do mundo quando diz que o status quo já não é uma opção, obrigando a escolhas urgentes a favor do reformismo, que sejam capazes de reflectir o novo quadro político europeu, muito distinto do que existia antes da crise. Percebe que não vale a pena ignorar a realidade que deixou nas mãos dos extremos a defesa da soberania. Propõe uma nova “soberania europeia”, a única que pode valer para impedir os efeitos negativos da globalização. É uma ideia francesa, que sempre teve a oposição de Berlim ou das pequenas economias exportadoras. Mas os tempos são outros. Em parte, a sua força vem do facto de ser o Presidente de um grande país europeu. Mas não é só isso. Macron chegou ao Eliseu aos 39 anos e, aos 39 anos, um político capaz de entender o seu tempo não vê o mundo da mesma maneira. Pode ser uma enorme virtude que justifica o que é talvez mais impressionante no Presidente francês: não hesita em correr riscos, precisamente numa altura em que a Europa se deixa arrastar por uma inércia e um imobilismo que já não são compatíveis com os desafios que tem pela frente, se não quer ficar reduzida a um “peão” no tabuleiro de xadrez mundial. Num clima de crescente pessimismo, Macron não baixa os braços. É voluntarista, quando o voluntarismo não está na moda. Sabe o que quer e não tem medo de dizê-lo com todas as letras. É assim que também governa a França. 

3. É talvez por isso que, quando fala, como aconteceu em Lisboa em razoável sintonia com o primeiro-ministro português, as coisas voltam a ganhar algum sentido. A tarefa mais difícil é traduzi-las na constante negociação de compromissos que foi e continua a ser o modus vivendi da integração europeia. O Presidente francês reconhece que esta Europa, ainda a 28 ou a 27, já não funciona. É preciso construir outra, que passe por uma muito maior diferenciação e que permita a um núcleo central, construído a partir do eixo franco-alemão, avançar mais depressa no sentido da partilha de soberania, funcionando também como pólo agregador de outros círculos de integração e dando-lhe um sentido estratégico. Curiosamente, tanto Macron como Costa destacaram aquilo que tem de se manter em comum: os valores que fazem da Europa um caso único “de paz, de prosperidade e de liberdade”. Para isso, Macron defende sem hesitar a reforma dos Tratados. Foi esta a única divergência com António Costa, na Gulbenkian, que não é uma divergência assim tão profunda. O primeiro-ministro português avisa para os riscos de se abrir uma Caixa de Pandora que, no quadro político actual, ninguém tem a certeza que seja possível voltar a fechar. Baseia o seu pragmatismo na experiência dos Conselhos Europeus, onde as divergências, nomeadamente com os países de Leste, são de tal ordem que tornam qualquer reforma impossível. Como referem fontes diplomáticas em Lisboa, há entre ambos, uma “distribuição de tarefas”. Macron é o “quebra-gelo”. O seu parceiro português tem de trazer outros atrás. Não todos, mas os fundamentais. Não é fácil, embora o eixo Paris-Lisboa tenha ganho inesperadamente um novo parceiro. Pedro Sánchez comunga da mesma visão de ambos sobre o futuro europeu e quer restituir à Espanha os seus velhos pergaminhos. “Numa ronda frenética por quatro capitais europeias, Berlim, Paris, Bruxelas e Lisboa”, Sánchez quis marcar desde o primeiro dia o regresso da Espanha ao centro da construção europeia”, escreve o European Council on Foreign Relations. Rajoy interessava-se muito pouco pela política europeia. Sánchez quer que o seu país volte a ocupar o estatuto de líder dos países do Sul, ocupando o lugar que a Itália deixou vago. Interessa-lhe um forte entendimento com o Governo português também porque ambos são o que resta da força da social-democracia europeia.

4. De resto, a Norte, a Holanda e alguns países nórdicos atravessam uma onda de descrença na União Europeia, directamente proporcional à ascensão das forças populistas e extremistas. Paris e Lisboa querem recuperar a Holanda, que ainda teima em olhar para o Sul com um preconceito que a crise do euro veio acentuar. Fazem um cerco constante a Mark Rutte. A Leste, a deriva contra o Estado de Direito e a democracia liberal já se ostenta sem qualquer pudor. Os países de Visegrado tomaram a União como refém, bloqueando tudo aquilo que não lhes interessa e o que lhes interessa é pouco. No Sul, se as coisas correm bem na Península Ibérica, a Itália é o mais sério aviso até à data de que as coisas ainda podem correr muito mal. O novo governo de coligação entre a extrema-direita de Matteo Salvini e o “populismo centrista” de Di Maio tem tido o cuidado de evitar rupturas, sem abdicar da sua agenda. Mas isso não quer dizer que a estratégia de Salvini tenha mudado: aliar-se a Putin e a Trump para visar a Alemanha. O centro-esquerda volta a entrar em processo de autofagia e Berlusconi caminha para o ocaso. A maior interrogação é como Roma vai lidar com a economia. Foram muitas as promessas mas é pouco o dinheiro nos cofres do Estado. A tentação de uma fuga para a frente continua a existir. 

5. O futuro da estratégia de Macron, de Costa ou de Sánchez continua, como sempre, a depender de Berlim, ou melhor, de Angela Merkel. A chanceler perdeu margem de manobra e está cansada. Mantém as suas convicções europeias. Queixa-se, e com razão, da falta de apoio dos sociais-democratas, seus parceiros da “grande coligação”, cuja voz não se ouve sequer no debate europeu. A obsessão do SPD, depois do seu acelerado declínio eleitoral, é a reconquista dos votos que foi perdendo na Alemanha, e que atribui à política reformista de Gerhard Schroeder. O ministro social-democrata das Finanças parece ter como objectivo na vida mostrar que é tão duro como Schauble. Merkel precisa de ajuda. Tê-la-á de Paris, Madrid ou Lisboa. O primeiro-ministro português não deixa cair a sua luta pela reforma da zona euro, para a qual tem o apoio de Sánchez e de Macron. E tem razão. Basta pensar que, perante uma nova crise, se o euro não resistir, a União Europeia caia no minuto seguinte. Acresce que o ambiente internacional não é tranquilizador.

Na Europa, praticamente desde a sua fundação, foi quase sempre assim: coube aos pequenos países impedir o confronto entre os grandes e encontrar soluções de compromisso. Portugal está em boa situação para seguir a tradição. 

Sugerir correcção
Ler 14 comentários