Sean Spicer: Trump tem “uma profunda veia de compaixão e simpatia”

Era um livro muito aguardado, como são todos os que prometem pormenores sobre a presidência Trump escritos a partir de dentro da Casa Branca. Mas no livro The Briefing, o antigo porta-voz do Presidente dos EUA continua a tentar enganar os americanos.

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Sean Spicer JIM LO SCALZO/EPA

Durante a sua breve, e cómica, passagem pelo cargo de assessor de imprensa da Casa Branca, Sean Spicer teve uma visão próxima e especial do Presidente Trump. Nas suas memórias, a que chamou The Briefing, retrata um Presidente que parece estranho para a maioria dos norte-americanos. De acordo com a narrativa de Spicer, Trump tem “uma profunda veia de compaixão e simpatia”. É “um homem de instintos e sentimentos cristãos”. É um homem que mostrou a sua humanidade e empatia durante uma chamada telefónica após a morte do pai de Spicer. “A empatia e a compaixão sinceras na sua voz são coisas que nunca esquecerei”, escreve o ex-assessor de imprensa. “Gostaria que mais gente visse este seu lado.”

O que muitas pessoas vêem é algo bastante diferente. Em vez de um homem maravilhoso e carinhoso, parte do público americano vê alguém que se gaba de “agarrar” mulheres “pela rata”, que denigre os pais de um soldado morto por um bombista suicida no Iraque, que disse no Twitter que a apresentadora da MSNBC, Mika Brzezinski, estava a “sangrar abundantemente por causa de um lift facial”, que é responsável por separações de famílias na fronteira com o México, que… há demasiada coisa que encaixa nesta categoria.

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Mesmo um livro de memórias políticas leviano iria tentar evitar uma diferença tão abissal entre a percepção pública e a opinião pessoal – talvez reconhecendo algumas falhas no chefe, ou comparando os seus pontos negativos com os de outros presidentes.

Porém, The Briefing não é um livro de memórias políticas, nem é um trabalho sobre a História recente, tão pouco um livro de revelações totais ou parciais. Na verdade, o que Spicer, que se demitiu em Julho de 2017 em conflito com Turmp [por discordar da nomeação de Anthony Scaramucci como director de comunicação; este esteve dez dias no lugar antes de ser afastado por um novo chefe de gabinete, John Kelly], faz é uma tentativa trapalhona de enganar os americanos, fazendo-os duvidar de tudo aquilo que viram com os seus próprios olhos desde pelo menos Junho de 2015, quando Trump anunciou a sua candidatura e rotulou os imigrantes mexicanos de violadores, iniciando uma tendência de ataques racistas.

Spicer segue de perto a prática, agora comum, da Administração Trump de maldizer os media. Navega entre os erros dos principais órgãos de comunicação durante a era de Trump. The Washington Post, The New York Times, ABC News, CNN e outros são criticados por terem notícias falsas ou afirmações suspeitas, como quando Spicer foi acusado – falsamente, diz ele – de ter expropriado um pequeno frigorífico que tinha coisas de membros júniores da sua equipa.

Spicer traça uma conclusão abrangente sobre os media a partir de um incidente infeliz no dia da tomada de posse de Trump, em Janeiro de 2017, quando o jornalista da revista Time, Zeke Miller, escreveu de forma incorrecta no Twitter que o busto de Martin Luther King tinha sido retirado da Sala Oval. Spicer escreve: “Isto sublinhou a forma como os media se tinham posicionado - acreditando que darem primeiro as coisas e sendo sensacionais é melhor do que estar correcto. O problema é que, mal é tweetada ou publicada, uma história dá início a uma narrativa, e nenhuma correcção vai ter o mesmo impacto que a notícia inicial, independentemente de quão errada esteja.”

Ao ler Spicer a dar sermões sobre erros, poderíamos supor que o antigo porta-voz mostrasse preocupação pelos tweets falsos e enganadores que Trump dispara diariamente para os seus 53 milhões de seguidores. “Perante estas explosões, os media esperavam quase sempre que eu fosse um provedor, se não um defensor directo, dos tweets de Donald Trump”, escreve Spicer. “Nunca o fiz. E considero que a minha posição nesta matéria é uma questão de princípio.”

Quanto à questão mais abrangente das mentiras de Trump… hum, que mentiras? Manipular a linguagem para torná-la incompreensível – e sem sentido – era um talento especial de Spicer, o assessor de imprensa, e claramente também de Spicer, o autor.

Ao discutir a honestidade do Presidente, ele escreve: “Se Trump era demasiado franco, abertamente impreciso na sua linguagem e provocadoramente abundante na utilização de ‘hipérboles verdadeiras’, muitos consideravam que Hillary fugia à verdade de formas que eram muito mais graves.”

O uso da linguagem por parte Trump – frequentemente apelidando os seus adversários de “Ted Mentiroso”, “Pequeno Marco" ou “Hillary Desonesta” – não parece, segundo a visão de Spicer, ser algo de grosseiro ou um precedente infeliz para a política presidencial. Era genial. Trump “era um mestre dos rótulos e enervava os seus adversários ao defini-los com alcunhas chamativas”, escreve Spicer.

Quando estava a iniciar o seu mandato de meio ano como assessor de imprensa, foi Spicer quem sugeriu (o que deu polémica) mudar as conferências de imprensa da Casa Branca para um espaço maior no Edifício Eisenhower. Jeff Mason, correspondente da Reuters que presidia então à Associação de Correspondentes da Casa Branca, tinha dito a Spicer que talvez fosse necessário mais espaço nas primeiras semanas da Administração, mas que o interesse nas conferências deveria diminuir com o passar do tempo. Tentando mostrar inteligência, sobretudo por comparação com alguns jornalistas, Spicer escreve: “À medida que o calendário passava de Fevereiro para Março, e que as conferências de imprensa se tornavam ‘televisão obrigatória’, atraindo milhões de espectadores diariamente, eu recordava-lhe gentilmente a sua previsão.”

A observação de Spicer demonstra uma falta de auto-análise tragicómica. Será que o antigo assessor de imprensa esqueceu totalmente a rábula que Melissa McCarthy lhe fez no "Saturday Night Live"? As suas conferências de imprensa eram “televisão obrigatória” precisamente porque a sua inaptidão facilitava as imitações de McCarthy. Spicer não fornece muitas reflexões pessoais sobre as performances de McCarthy. Parece algo confuso sobre como responder. “Não tinha outra escolha a não ser rir”, escreve. “Mas não há como negar que era engraçado.”

Ao lembrar a sua carreira, Spicer dá uma narrativa clássica de Washington. Conseguiu um trabalho de principiante quando era um jovem profissional, estabeleceu laços, entregou-se à política Republicana, teve um par de oportunidades em campanhas e finalmente conseguiu um lugar no Comité Nacional Republicano ao lado de Reince Priebus. Quando Trump apareceu, lá estava Spicer, pronto para ajudar. Por outras palavras, durante anos e anos, Spicer trabalhou na política do Partido Republicano, tudo pelo privilégio de trabalhar com este Presidente. Será que Spicer teve algum período de reflexão? Há poucos sinais disso no seu livro. Trump ganhou, e é tudo.

Sean Spicer revê a polémica sobre a dimensão da multidão durante a tomada de posse de Trump. Na manhã após a cerimónia, o Presidente telefonou ao seu assessor de imprensa para lhe perguntar se tinha visto as notícias. “O Presidente foi claro”, escreve Spicer. “Aquilo tinha de ser tratado – e agora.” Spicer organizou uma conferência de imprensa e fez o que julgou ter sido uma declaração forte acerca da forma pouco rigorosa como os media abordaram a adesão à tomada de posse. E depois saiu, sem responder a perguntas.

“Fui para o meu gabinete, esperando uma frase do género ‘bem resolvido!’ da parte do Presidente; em vez disso, Reince estava à minha espera para me dizer que Presidente não estava nada contente com o meu desempenho.” O Presidente queria “uma resposta polida e profunda em defesa da sua posição”. No livro, o ex-assessor culpa-se a si próprio por este descuido. “Comecei a pensar se o meu primeiro dia seria o meu último”, escreve. “Deixei uma má primeira impressão e, ao olhar para trás, acho que terá sido o início do fim.”

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

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